Editado
conforme novo acordo Ortográfico Brasileiro
Concepção
da capa:
Lucas
Leal Bosi
Revisão:
J.
Bianchi
1ª
Edição – Junho 2011
Muitos
sonhadores perseguem tesouros quiméricos, escavando em terras
alheias distantes, poucos são os que vasculham, primeiramente, no
quintal da própria alma.
DEDICATÓRIA
Este
trabalho é dedicado às pessoas que,
pacientemente,
investigam evidências
ocultas
em um crime perfeito.
I
- SANGUE-FRIO
Quem
observasse André Gustavo, em plena segunda-feira de manhã,
atravessar calmamente a Avenida Jerônimo Monteiro e assentar-se num
dos inúmeros bancos da Praça Duque de Caxias, não imaginaria,
jamais, o que ele fizera na terrificante tarde do domingo.
Trazia
o jornal A GAZETA sob o braço direito para inteirar-se das notícias
a seu respeito. Entretanto as leria com ar de inconformado cidadão,
como se elas fossem, particularidades dirigidas a um monstruoso
facínora incógnito – pois, às vezes, ficava deveras aborrecido
com o jornalista abusado, que desvirtuava todo o cenário do crime,
fabricando, por conta própria, peças e fatos não presenciados,
porém, que era de seu conhecimento que não ocorreram. André
Gustavo chegava a pensar que o intuito do sagaz redator, era que o
criminoso não suportasse tais inverdades e se revelasse. Contudo,
ele era um bandido de sangue-frio, cauteloso e sinistramente
estratégico, por isso, as alarmantes suposições jornalísticas, na
maioria das vezes, o faziam apenas esboçar um sorriso torto no canto
esquerdo dos lábios, nada mais, principalmente quando os periódicos
sensacionalistas, agregavam hipóteses burlescas, de criação
ficcionista, jamais por ele praticadas; só porque descobriam, na
cena do crime, uma caixinha de fósforo de um motel sofisticado, ou
um cartão de visita, de pessoa inexistente, deixado,
propositalmente, sobre o corpo da vítima.
Fumava
seu longo cigarro Hollywood, travado no canto esquerdo da boca;
poderia até soltá-lo, que o cilíndrico venenoso permaneceria
grudado na secura do lábio inferior, o que, às vezes fazia para dar
lugar ao sorriso debochado. André Gustavo sempre foi um indivíduo
enigmático, porém, seu aspecto social, inspirava tranquilidade,
sensatez e confiança. Seus passos medidos indicavam despreocupação
absoluta com o passado; principalmente com o dia de ontem. Afinal,
fora apenas mais um compromisso cumprido; um pouco fora do normal de
seu cotidiano; mas toda a sua segurança se prendia ao fato de que o
concluíra com esmerado sucesso. Uma missão audaciosa e bem mais
complicada que as outras tantas anteriores, no entanto, não passara
de mais um trabalho sazonal, de interesse familiar escuso, que, para
ele, pouca diferença fazia.
A
cada nova incumbência encomendada pelo seu Contratante, André
Gustavo dava vida a um personagem diferente; além de toda técnica
de maquiagem que aprendera e aplicava minuciosamente, valia-se de
perucas, cavanhaque, verrugas e cicatrizes, sem contar que alugava
salas, casas e até fazendas. Apresentava-se no palco criminal como
um cidadão impoluto. Seu disfarce poderia até ser reconhecido após
o delito, fato que nunca deixara ocorrer, dado a exatidão do
planejado comparado ao executado. O alvo, importante ou não, era o
seu único objetivo; uma vez alcançado, encerrava ali o capítulo.
Queimava todas as anotações, todo o material empregado na
elaboração de sua criatura e tudo que pudesse comprometê-lo,
tornavam-se cinzas. E, no instante seguinte, voltava a respirar o ar
dos socialmente corretos. Aliás, ao finalizar a tarefa de domingo,
passou por sua cabeça, que após receber a parcela financeira total,
encerraria a sua cruenta carreira, pois nos últimos dez anos, o
final de uma etapa, significava, consequentemente, o início de outra
a ser esquematizada.
André
Gustavo tinha um passatempo favorito: assistia várias vezes aos
filmes nos quais os policiais, através de um pequeno pedaço de pano
desbotado, fio de cabelo pendurado em um galho quebrado, ou mesmo
pela lama ressecada na sola de um sapato, descobriam o endereço e
até a forma pela qual o homicida aniquilou sua vítima. Embora fosse
ficção, ele rebuscava implícito nas cenas, algum deslize que
pudesse cometer e, por analogia, viesse a comprometê-lo.
Em
outras películas, se desmanchava de rir ao ver um só homem, numa
invasão repentina a um quartel fortemente vigiado, liquidar
facilmente, centenas de meliantes; além de satirizar a ousadia de
sua arma, automática, que não ficava nunca sem munição; sem
relevar o fato de que só o mocinho acertava os alvos, enquanto seus
inimigos atiravam em sua direção e nada lhe acontecia. Noutras
situações, admirava o exagero do absurdo numa perseguição, em que
os veículos voavam até sobre casas e caíam do outro lado sofrendo
apenas um relativo solavanco e prosseguiam na corrida louca.
Ao
comparar esses filmes com os de sua juventude, André Gustavo sente
uma pontada de nostalgia.
-
“Aqueles filmes, ingênuos, eram água com açúcar... os de hoje
expelem sangue e fel...”
Lógico
que todo assassino, consciente, também é frio e calculista;
André Gustavo não fugia à regra. Antes de qualquer empreitada,
exigia seis meses de prazo para estudar a vítima, traçar seu
itinerário, planejar todos os detalhes, pormenorizar horários e
prováveis incidentes. Judicioso e adequando o pessimismo a seu
favor, ia além: até o encontro eventual de sua vítima com um
amigo, uma passeata, uma batida de carro ou um atropelamento, eram
passíveis de serem diagnosticados no seu esboço e, numa fração de
segundo, o cronograma se mostrava atualizado. Imediatamente
aplicava-se um novo horário para a execução. Não podia ser
surpreendido por nenhuma fatalidade casual. Estava sempre prevenido
caso ocorresse algo imprevisto antes do desfecho. Sob qualquer ameaça
ou contratempo iminente, o planejado era reprogramado, até chegar ao
estágio de ser abortado quando apresentava um fato que o tornasse
inviável ou representasse um mínimo risco de não sair com a
perfeição que ele próprio se cobrava. Agiu assim no caso da chuva
repentina que desabou e da ventania que ocorreu em um de seus poucos
fracassos. O vento inesperado soprou forte e a chuva caiu pesada
sobre o asfalto. André Gustavo não contava com essa intempérie,
nem o Serviço de Meteorologia que foi previamente consultado - ambos
erraram. Seu disfarce começou a apresentar o desgaste pela ação da
água. Não teve dúvida, abortou a missão. O esquema inteiro foi
reformulado e voltou para a mesa de trabalho em uma nova planilha.
Além
de carregar sempre consigo uma repugnante verruga postiça e uma
cicatriz perfeita por debaixo da manga para serem usadas numa
emergência - pois tais características não passam despercebidas
pelas pessoas, que, apavoradas, não são capazes de dizer a cor da
pele do marginal, mas descrevem, nitidamente, o sinal que trazia
saliente no rosto - André Gustavo, em algumas ocasiões, por
precaução, disparava e-mails pré-programados de seu computador
caseiro para diversos amigos, contra-atracando a casualidade e
apresentar álibis em sua defesa, caso fosse investigado
virtualmente.
-
Todo bom ilusionista faz isso, atrai os assistentes para a sua mão
direita, enquanto articula a mágica com a esquerda – já lhe
ensinara seu velho pai.
II
- PSICOSE DE BANDIDO
Num
criterioso exame introspectivo, embasado na realidade das ações
que praticara nos últimos anos, André Gustavo se posicionou
exatamente no ângulo de seu Contratante. Sentado no banco da Praça
Duque de Caxias, vendo o próprio reflexo na vidraça da loja em
frente, analisava o seu semblante enigmático, portador de um cérebro
astuto, que sabia demais, recheado de segredos enlameados e que,
atualmente, representava perigo, uma mina à deriva pelas ruas da
cidade, um detonador ambulante pronto para explodir e jogar pelos
ares o conceito majestoso que o Contratante ostentava numa fachada
enfeitada por sua vida empresarial e social limpíssima e
movimentadíssima, tanto nas badalações junto à elite, quanto nos
cobiçosos milhões da fortuna arrolada por crimes cruéis e fraudes
audaciosas. Embora cercado por pessoas interesseiras, egoístas e
fingidas, o Contratante não despertava incredibilidade em sua
honradez. Era bem-vindo em todos os notáveis eventos da alta-roda.
De
fato, André Gustavo sabia demais. A conclusão que tirou da análise
individual, sem tomar partido, não lhe fora nada favorável, ao
contrário, via-se como futuro ou próximo alvo a ser eliminado. Num
temor repentino, elevou seus olhos para o alto dos edifícios.
Transtornado, com a psicose de perseguição brotando pelos poros,
imaginou vários canos de armas de fogo apontados para a sua cabeça
neste exato momento. Sentado no banco de uma praça vazia, lendo seu
jornal numa manhã ainda silenciosa de segunda-feira... seria alvo
fácil. Quem ligaria sua morte ao acontecido no domingo? Quem estaria
ali para testemunhar a execução sumária? Apenas uma detonação e
milhares de ecos confusos se formariam, tornando impossível detectar
de qual quadrado envidraçado viera o projetil fatal. Encontrariam
apenas seu corpo com a testa espatifada. O silêncio não acusaria
ninguém. Somente fortaleceria a estatística dos crimes insolúveis
que lotam os tribunais.
A
apreensão de que um feixe de luz a laser, saindo no reflexo de
qualquer das janelas dos inúmeros apartamentos ao seu redor,
tremulava em sua testa, o fez mudar de posição. Rapidamente
abaixou-se como se catasse algo no chão que lhe havia escapulido das
mãos. Caso alguém puxasse o gatilho neste ínterim, erraria o alvo
e ele teria uma segunda chance. Porém, nada aconteceu, a não ser
três pombos que pousaram tranquilos perto do banco vizinho e
começaram a mariscar as migalhas de pão, deixadas por algum mendigo
que ali passara a fria noite. André Gustavo estava apenas cismado
com ele mesmo ou era a sua consciência, lhe pressagiando que um
tempo de aflição e angústia teria início?
-
A desconfiança, quando bate muito forte, apresenta-se como
certeza absoluta – alertava a frase de seu velho pai.
A
desconfiança relembrou a André Gustavo o seu primeiro
emprego desonesto.
É
estranha a sensação psíquica de impotência na cabeça sonhadora
de um adolescente. Os mais puros anseios se distanciam e se dispõem
na real percepção visual dos sonhos. Apresentam-se longínquos, na
verdade, inalcançáveis.
O
primeiro convite de trabalho veio de quem ele menos desconfiava. Um
vizinho gorducho, tido como honesto e trabalhador. Dono de um
ferro-velho, que suava a camisa para ganhar o pão de cada dia. Numa
voz rouca propagou:
-
Há dois tipos de bandidagem... a armada e a eletiva.
À
cara desapontada de André Gustavo, ele retrucou:
-
Quem se identifica como perfeito... já demonstra seu primeiro
defeito.
A
proposta indecorosa, para quem já estava desiludido com a
humanidade, não foi das piores:
-
Lhe entrego um carro com chapa fria... chassi adulterado e dois
comparsas. Quando o golpe falhar, se estiver acuado, abandone tudo e
caia fora sem deixar pista!... Pois eu não conheço nenhum de
vocês...!
André
Gustavo tornou-se um ladrão de carga ou "Pirata do Asfalto"
- como os jornalistas começaram a batizar esse tipo de ação.
O
dono do ferro-velho tinha comprador para toda e qualquer mercadoria
que chegasse e ainda desmanchava o caminhão. Tudo evaporava em sua
oficina.
O
primeiro golpe foi perfeito: um caminhão novo, carregado de remédios
caros, estacionou no ferro-velho ao amanhecer e às sete horas não
havia mais vestígio de um frasco, sequer um parafuso comprometedor
era encontrado dentro do estabelecimento. André Gustavo recebeu,
além de elogios, muito dinheiro pela perfeição do esquema. Já o
segundo foi desastroso. Na boleia da carreta, iam dois seguranças da
empresa transportadora que reagiram ao assalto e mataram os comparsas
de André Gustavo, que conseguiu fugir por milagre. O dono do
ferro-velho, com medo, suspendeu as operações e desmanchou o
comércio. Talvez tenha sido melhor assim; um ano depois, o gorducho
se casou com uma senhora distinta da alta sociedade e passou a viver,
honestamente, com o dinheiro dela.
Aflito,
André Gustavo levantou-se abruptamente do banco. Retirou-se
da Praça Duque de Caxias como se tivesse esquecido uma panela no
fogo. Contudo, seu espírito prevenido não poderia deixar que ele
entrasse em casa, estabanado, fugindo de seu desespero. Logicamente a
porta já estaria com alguma armadilha explosiva à sua espera. Assim
que abrisse dois centímetros, ela detonaria uma sequência de
bombas, devidamente dispostas que o jogaria, aos pedaços, para os
ares. E a quem iriam culpar...?
–
“Ninguém” – respondeu-se entre os dentes.
Socialmente
ele não tinha ligação com o mundo do crime, nem ficha na polícia,
portanto, nenhum inimigo suspeito.
-
“Como sair dessa enrascada particular?...”
André
Gustavo não desvendava uma escapatória, só lhe surgiam dúvidas: o
Contratante já conheceria todos os seus costumes? Tinha a intenção
de não lhe pagar a outra metade? Talvez até o vigiasse de perto...!
Aquela
praça era seu ponto habitual, seu local predileto. Fumava seu
cigarro e conferia, mangando do jornal, contrapondo o que fora
publicado com o fato verídico. Será que o indivíduo encarregado de
exterminá-lo estaria à espreita desde o amanhecer? Assim, nem em
seu esconderijo secreto encontraria segurança. Também não poderia
andar disfarçado sem estar em serviço, se desse o azar de ser
barrado numa revista policial, todo o seu passado poderia vir à tona
num segundo. Precisaria aprender rápido: como sobreviver a uma
perseguição invisível.
-
“Talvez eu esteja exagerando. O mundo todo é autossugestionável.
Qualquer peste contagiante gera milhares de irrecuperáveis
hipocondríacos, que correm às farmácias para estocarem o remédio
salvador!”
Embora
fizesse claro e amplo sentido a conclusão que chegara, não queria
crer que algum debiloide, despreparado, estivesse a caçá-lo, de
arma em punho, pela cidade. Por um instante, André Gustavo achou que
fosse mesmo apenas uma crise paranoica.
-
A inteligência dos assassinos profissionais não funciona no
desespero – refletiu buscando refúgio psíquico.
Além
disso, ele era conhecidíssimo no meio do crime, dito, secreto. Sua
pontaria, exaustivamente treinada, por necessidade, era motivo de
inveja de muitos e quem recebesse uma proposta para liquidá-lo,
contaria duzentas e cinquenta vezes antes de aceitá-la, pois, se
errasse ou se o tiro não fosse fatal, sabia, de antemão, que não
sairia vivo.
Para
poder voltar à vida rotineira, sem imaginar canos escuros apontados
para a sua cabeça, André Gustavo precisava certificar-se; descobrir
o que seu Contratante andava fazendo.
Para
não demonstrar apreensão, contudo, precavendo-se, mudou o percurso
costumeiro que sempre fazia na volta para a sua casa. Entrou no
primeiro ônibus que apareceu e saltou na parada seguinte. Ninguém o
seguia. Enveredou pela Rua Henrique Moscoso e dobrou a esquina.
Encostou-se no muro para ver se algum desconhecido o perseguia.
Aguardou em vão, pois somente uma senhora de meia-idade, arrastando
a bengala, trazendo uma sacola de pães, passou calmamente por ele,
mancando e desejando-lhe: “bom-dia”. André Gustavo se repreendeu
intimamente. Estava fugindo de sua sombra, não havia ninguém
interessado em eliminá-lo.
Mesmo
assim, ao chegar em casa, parou na calçada, disfarçou como quem
empurra alguma folha seca para a sarjeta e esquadrinhou as esquinas.
Constatou a rua deserta, contudo, cauteloso, entrou pelo portão
automático da garagem – talvez o social estivesse minado. Olhou
por debaixo do carro pensando encontrar algum artefato estranho
colado sob o banco do motorista. Da varanda, atentou a porta
principal. A fechadura parecia intacta, a tinta sem marcas de dedos,
a campainha normal. O tapete descansava no mesmo lugar. Tudo se
apresentava em ordem. Convenceu-se que era mesmo paranoia; seu
Contratante não coadunaria com um matador de aluguel para
silenciá-lo. Afinal, não se encontra cão de guarda fiel perdido no
mato.
André
Gustavo analisou novamente seu feito da tarde anterior e o finalizou
orgulhoso de si. Do planejado ao executado fora uma pintura de
magnífica perfeição. Não houve nenhum embaraço, atraso ou
inconveniente. Não deixou marcas e nem foi visto. O assassino, já
identificado morto, não daria pista alguma que levasse a polícia ao
motivo do delito. André Gustavo reviveu a queda do joão-ninguém;
que caiu tal qual passarinho ao receber uma pelotada certeira sem
saber de onde veio. Despencou despojado, sem reação, sem grito, sem
alarde. Os aplausos para o Senador encobriram o barulho do baque do
corpo no asfalto.
André
Gustavo retornou apenas alguns minutos antes do disparo. Analisou as
últimas fases predominantes do plano. O assassino se encontrava lá,
posicionado como o Contratante lhe dissera que estaria. Montava sua
arma como quem prepara a mistura das tintas para a elaboração de
mais uma obra-prima. Encaixe por encaixe, peça por peça. Esculpia
com habilidade a máquina mortífera que ganhava forma perigosa.
André Gustavo, com seu possante binóculo, através do vidro escuro,
vigiava o pilantra.
O
Senador Marcelo, em seu primeiro comício, já arrancava aplausos e
vivas da aglomeração popular no centro nervoso de Vitória. Seu
discurso, inflamado, chegava aos ouvidos de André Gustavo em
palavras quebradas, trazidas em ecos disformes, pelo vento
inconstante que roçava entre as paredes dos edifícios.
Seu
ângulo de visão não permitia divisar o palanque, já que,
propositalmente, se posicionara oculto atrás dos prédios e de
frente para o assassino. Sua preocupação agora se voltou para ele,
que enroscava a última peça de sua escultura: o silenciador. Tomava
a melhor posição de disparo. André Gustavo acomodou-se no pedestal
de sua arma e acompanhou os movimentos do assassino pela lente da
mira. O seu disparo só poderia ocorrer após uma fração de segundo
ao do dele. Concentrou-se na testa. Aguardava o sinal que o tranco da
arma causaria ao disparar, demonstrando o exato momento para André
Gustavo apertar o gatilho.
A
expectativa e a atenção, não permitiam que André Gustavo
respirasse normalmente. Um descuido e todo o planejado se
deterioraria. Seis meses de pesquisas em visitas a diversos lugares
estratégicos, localização e posicionamento das câmeras de
vigilância dos prédios vizinhos para conseguir um ponto neutro,
invisível aos olhos mecânicos, de fácil acesso e fuga rápida pela
rua oposta, poderiam estar perdidos. Porém foi instantâneo.
Enquanto o Senador Marcelo levava a mão ao peito, o assassino caía
da cobertura do prédio em frente ao palanque, acompanhado de sua
estupenda arma. No momento do disparo, André Gustavo ouviu palmas.
Em seguida um “óóóóhhh!!!” generalizado e
surpreendentemente lamentoso.
Instintivamente
dezenas de seguranças e policiais, de armas em punho, cercaram todo
o prédio. Após uma rápida reunião, formada por sete elementos, um
batalhão adentrou pela portaria. Alguém mais estaria lá em cima ou
o assassino havia se desequilibrado e veio abaixo?... Ou não teria
sido ele o autor do disparo?... Isso só o exame de balística
comprovaria, pois a arma estava ao lado do seu corpo que trazia
apenas uma perfuração, misteriosa, na testa.
Dentro
de dois minutos as sirenes das viaturas policiais e das ambulâncias
se misturavam insistentes, zuniam angustiantes, num sinal desesperado
de socorro urgente. Mais pessoas iam se aglomerando. Gritos de
comando eram ouvidos. Um cordão de isolamento foi instalado para
manter afastados os curiosos que queriam ver tudo de perto.
André
Gustavo, alheio àquela balbúrdia, desmontou sua arma calmamente,
desceu as escadarias até ao décimo andar, tomou o elevador para
despertar a atenção do porteiro e indicar de qual número ele
viera, já que seria o mesmo em que saltara quando subira. Porém
passou sem ser notado, pois todos os serviçais distraíram-se com o
alvoroço que se formou na avenida central de Vitória.
André
Gustavo, orgulhoso da esplêndida perfeição de seu plano, saiu pela
rua detrás, pegou seu carro e foi para casa descansar.
-
“Nenhum contratempo, nenhum atraso” – repetiu.
Não
deixou nem pistas de seu personagem - um senhor de chapéu coco, meio
corcunda, sempre trazendo uma pasta na mão direita; fala calma e
pausada; sorriso constante para mostrar o dente de ouro; grossas
sobrancelhas contrastando com o ralo bigode - pois o personagem
tornou-se cinzas no mesmo dia.
III
- ARQUIVO MORTO
Os
poucos dados que obtivera do Contratante, não explanavam para André
Gustavo a extensão que o seu ato provocaria no seio da família
Tostellini. Uma parte dela, deveras enlutada pela morte do Senador e
outra, empertigadamente satisfeita. Exteriorizado claramente no
enterro, pois alguns tiveram que fingir um sofrimento desmedido, num
pranto derramado por muitas gotas de colírio, enquanto outros,
inquietos, se enterneciam inconformados.
André
Gustavo conhecia somente a intenção gananciosa do sobrinho do
Senador morto. Um infante maquiavélico, que mal largara a fralda e
começava a engatinhar com vários crimes de mando nas costas. Sua
futura riqueza estava presa atrás de um quadro de pouco valor,
afixado na parede do vasto corredor da mansão, que o Senador mandou
construir para estocar ali, os pertences valiosos da família.
O
sobrinho não respeitava barreiras, obstáculos, medida de segurança,
parentescos, honra, nem ética social. No entanto, para os demais
parentes, tornou-se um adulto de ilibada moral. Seu objetivo era ter,
o quanto antes, a fortuna do Tio Marcelo ao alcance das mãos. Talvez
por ganância ou para gastar, grande parte, nas noitadas com a turma
da faculdade particular - que cursava há oito anos. Frequentar a
faculdade era só mais um pretexto para auferir a sua liberdade.
Quantos trabalhos noturnos, elaborados em grupo, foram maquinados
para encontros libidinosos e orgias, nos finais de semana, em
inúmeros sítios e fazendas alugados!
Sua
mãe, Hortência, descobrira seu mau desempenho nos estudos, pois, em
sua ausência, vasculhara os cadernos que ele ocultava no fundo das
gavetas e encontrou vários testes, trabalhos e provas dentro deles,
cujas notas, vergonhosas, a desiludiram. Mas a viuvez a tornou
dependente de mesadas e doações esporádicas do Senador Marcelo,
irmão de seu falecido marido, assim, resolveu calar-se, com receio
de que represálias financeiras recaíssem sobre eles.
Hortência
e Marcelo, antes do casamento, travaram um confronto moralista, não
muito saudável. Hortência, de classe média pobre, conquistou o
coração do jovem Alberto, com um sorriso, num casual esbarrão na
saída de um cinema. Daí ao pedido de desculpas, de ambas as partes,
nasceu um amor que só o destino, silencioso e imprevisível, é
capaz de articular. Somos marionetes de suas escabrosidades, que,
numa fração de segundo, nos transporta ao fundo do poço ou nos
eleva para a mais liberal sensação de felicidade suprema. Sempre
foi assim que esse controlador de sentimentos tratou a humanidade,
com Alberto e Hortência não foi diferente. Tornaram-se: eternos
apaixonados. Causavam inveja aos demais membros infelizes da família,
pois o mundo, para eles, era constantemente cor-de-rosa. Seus olhos,
enamorados, não enxergavam as tenebrosas nuvens que os rondavam.
O
Senador Marcelo, na época, um simples acompanhante do pai, o então
Governador do Estado, o eminente e sagaz Benjamin Tostellini, não
teve alternativa; aceitou o casamento do irmão com a “pobretona”
como de imediato a classificara e algumas vezes a ela se referira nas
discussões acaloradas com Alberto e familiares que se posicionaram a
favor do enlace matrimonial.
-
“Esse conto de fadas esfarrapado não tem como dar certo!” –
chegou a bradar num momento de desabafo.
Porém,
o tempo e o sobrinho, que veio bem antes do prazo normal, mostraram
para o Senador Marcelo que ele estava errado. O equilibrado futuro
político, não hesitou em se desculpar pelo mau juízo que fizera,
argumentando, entretanto, que só agira assim pensando na felicidade
do irmão, pelo qual se sentia responsável, jamais por mesquinhez.
A
carreira política do Senador Marcelo teve início no ano seguinte,
isso há mais de dezesseis anos, quando, apoiado pelo pai, se
candidatou a vereador. Foi eleito com uma vantagem esmagadora de
votos. Quatro anos após, mesmo antes de sentar-se na cadeira da
Assembleia Legislativa, era indicado como futuro prefeito da Capital,
o que aconteceu no pleito seguinte. Sua ascensão foi meteórica. Nem
bem havia recebido a faixa de Prefeito e seu nome já era cogitado
para Governador. Antes mesmo de assumir o Governo do Estado,
novamente era questionado para qual futuro cargo pretendia se
candidatar.
Ao
Senador Marcelo, embora não tenha recebido um voto sequer para ser
nomeado a tal cargo, bastaram dez minutos de discurso inflamado, para
que morresse com esse título honorífico, cedido pelos concidadãos
que estavam naquele comício fatídico.
-
Uma homenagem justa... para um homem que dedicou a sua curta vida
pública, à justiça... e morreu pelo povo, que com orgulho e
honradez sempre representou – comentou um partidário, emocionado,
em seu velório.
O
enterro foi concorrido. A amplitude de sua popularidade ficou
confirmada perante a presença dos milhares de eleitores, que
despontavam dos mais distantes rincões, para expressarem a gratidão
e se despedirem daquele que seria o futuro presidente, talvez o
verdadeiro “salvador da pátria” – como mencionou um incógnito
admirador, jogando um buquê de flores brancas sobre o caixão, no
momento em que descia para a sepultura.
André
Gustavo já se julgava um infiel patriota, pois, certamente, o
Senador Marcelo sairia do Senado, carregado pelo povo, nas urnas,
para a Presidência da República. Porém, o Contratante fizera uma
oferta irrecusável. Era muito dinheiro envolvido, talvez a
empreitada nem pudesse ser rejeitada, pois os laços familiares foram
expostos pela primeira vez. A recusa significaria uma perigosa ameaça
aleivosa. André Gustavo se arrependia de não ter sabotado o plano.
Poderia, em vez de puxar o gatilho após, puxar antes e se desculpar
com um suposto urubu, que voara entre ele e o assassino, levando-o a
crer, precipitadamente, que já houvesse detonado sua arma. Mas não,
para André Gustavo a responsabilidade de um acordo passava por cima
da honra e da pátria. Não assimilara corretamente o que a
professora Jacira explanara sobre esse tema, quando ele, ainda
criança, prestava atenção à aula... foi o que penetrou em sua
mente perplexa nesta hora... Seu primeiro dia de aula... numa escola
enfiada no meio da roça... que apresentou-se como um mundo novo.
Gostou daquele monte de crianças juntas, que, até então, nunca
tinha visto. Principalmente porque havia muitas do seu tamanho.
–
“Isso é uma festa, não uma escola” - conceituou.
E
a professora Jacira, naquele dia, lhe ensinou uma coisa que não
esqueceu:
-
Meus estimados alunos, a melhor coisa que existe na vida é você
chegar em casa e encontrar todos os seus familiares felizes. Para
isso é necessário que vocês não fujam de suas obrigações e de
seus afazeres. Tenham sempre em mente que é responsabilidade de cada
um – a professora correu o dedo indicador pela sala -,
tratar bem e agradar aqueles que os cercam. Agindo assim, todos
reconhecerão em cada um de vocês... uma pessoa digna e sentirão
muito orgulho.
Só
que o caminho para a escola passou a ser um perigo. Tanto que André
Gustavo desistiu no terceiro dia, pois para chegar à escola,
precisava passar no meio de um pasto cheio de bois bravos. Levou dois
galopes arriscados. Escapou de ser chifrado ao lançar-se por debaixo
da cerca de arame farpado, pois o animal bufava e queria trucidá-lo,
como se ele fosse seu pior inimigo. Aquela “festa” passou a não
valer o risco. Achou que os animais não gostavam de sua família, já
que os atacavam até quando saíam para a missa.
Como
se não bastassem os animais importunarem, numa noite, a mãe de
André Gustavo acordou com o barulho do trinco da janela da cozinha -
que era apenas um gancho preso numa argola - sendo destrancado.
-
“Alguém ou algum bicho o abriu” – concluiu ela.
Imaginando
que um morcego cego esbarrara na tranca, já que por fora, a janela
era alta do chão, ela se levantou e a fechou. Apesar de nascida e
criada na inocência da roça, ao voltar para a cama, ficou cismada e
se manteve acordada em vigília.
Após
alguns longos minutos, novamente o barulho do mesmo trinco se
abrindo. Aí ela não teve mais dúvida: não era nenhum morcego
cego. Futucou seu marido que dormia o sono cansado do dia duro.
Depois de ouvir atentamente as sussurradas explicações, ele pegou a
velha garrucha de dois canos e foi para a cozinha. Inocentemente,
acendeu a lamparina e viu a janela aberta. Olhou para fora e notou
que, encostado à parede, havia um tronco de madeira que ele cortara
para fazer uma gamela. A esperteza acendeu a sua mente. Ele apagou a
lamparina. O silêncio do vazio se perpetuou por alguns segundos. O
matuto deu três passos fazendo barulho no assoalho de madeira e
mesmo sem ver ninguém, gritou:
-
Olha lá ele!...
Lógico
que só podia ser um homem que por ali vagava e mesmo que fossem dois
ou mais, nenhum deles arriscaria permanecer imóvel. No mesmo
instante, dois homens disparam numa carreira pelo pasto afora. Para
assustar, o pai de André Gustavo atirou para o alto e escutou o
grito de dor dos dois, talvez, alvejados moralmente.
Aqueles
gatunos deram muito trabalho aos meeiros. Porém eles eram
atabalhoados, segundo relatos dos vizinhos, ao entrarem na casa de um
fazendeiro, um deles teria pisado justo na perna da moça que dormia
logo abaixo da janela. Noutra casa, na hora da fuga, devido ao ataque
do cachorro, um deles deixou metade da camisa e do couro das costas
numa cerca de arame farpado. Reunidos, os moradores registraram
queixa na delegacia, o delegado deu carta-branca:
-
Podem atirar para matar... ninguém vai preso por isso. Eu garanto. –
Todos acharam essa lei: rápida, simples e justa.
Até
que, certa feita, um dos colonos disparou certeira chumbada no
traseiro de um deles e nunca mais se ouviu falar das façanhas
noturnas da dupla trapalhona.
IV
– ENCURRALADO
André
Gustavo concluiu sossegadamente na varanda, que o mal que o acometera
na praça, fora apenas um desarranjo mental. Porém, no passo
seguinte, ficou deveras assustado; mesmo já tendo inspecionado toda
a varanda, a ideia fixa de perseguição persistiu como um pesadelo
mal definido; pois poderia, de fato, haver um complô para
exterminá-lo na quadra seguinte, o que talvez só não tenha
ocorrido porque ele mudou o trajeto na volta para casa.
O
Senador não pode mais revelar segredos, pois está morto. Não
deixou dossiê acusador. Morreu pelas mãos de um assassino que foi
executado no mesmo instante, sem falhas, nem suspeita de tal
estratagema. Qual motivo alguém teria para liquidar o Senador em
pleno palanque? A pergunta fica sem resposta, porque era um homem
querido, carregado diversas vezes pelo povo. Logicamente foi vítima
de um fanático, antipatriota, que só queria aparecer na
televisão... Ou de um maníaco, que ao começar uma série de
crimes, deu azar e foi morto no primeiro que cometeu. Quem o matou
fez uma boa ação, pois acabara de interromper a corrente de mortes
que teria mais contas que um rosário. E que, por infelicidade,
ceifara uma carreira promissora de um jovem político, no penúltimo
degrau de sua vida pública.
André
Gustavo sossegou. Não, seu Contratante não faria uma loucura
dessas. Correria o risco de ser descoberto. E pelo que se sabe até
agora, não há nenhum cisco manchando seu nome íntegro, honesto e
respeitado. Pegou a chave, rodou a tranca e virou a maçaneta. Nesse
momento ele fechou os olhos. Já vira em muitos filmes, que é justo
durante este ato que ocorrem as explosões. Mas não, não desta vez.
Ele abriu a porta e a fechou do mesmo jeito.
O
retrato de sua mãe, já falecida, afixado na parede, cuja face fiel
tantas vezes lhe pareceu simpática, agora o repreendia severamente.
Mostrava-se sabedora de sua última conspiração pecaminosa. Ao lado
da foto, em uma tira de papel amarelada, trazia uma poesia em letras
garrafais, que André Gustavo só lia, quando aflito se encontrava.
Ser
mãe é:
Somar
sentimentos.
Estocar
saudade.
Diminuir
a raiva.
Distribuir
felicidade.
Multiplicar
a paz.
Derramar
bondade.
Buscar
a esperança.
Cativar
a amizade.
Abraçar
a ternura.
Difundir
paciência.
Repugnar
o desprezo.
Afrouxar
a resistência.
Abandonar
o vício.
Espancar
a violência.
Esquecer
o ódio.
Dividir
a paixão.
Atropelar
o ciúme.
Respeitar
a afeição.
Conquistar
a sensatez.
Doar
asas à certeza.
Cultivar
o dom da fé.
Sorrir
para a tristeza.
Educar
a teimosia.
Expulsar
o rancor.
Enraizar
o convívio.
Perpetuar
o amor.
André
Gustavo jogou-se no sofá, envergonhado, sem vontade de tomar
conhecimento daquilo que o jornal realmente trazia sobre o
assassinato do Senador Marcelo por um indivíduo desconhecido, que
foi executado em seguida, por alguém, de algum ponto da cidade,
ainda não identificado...
Com
isso repetindo em sua cabeça, deitou na poltrona e fechou os olhos.
Viu novamente o assassino caindo. Não pode visualizá-lo até o
asfalto porque o prédio vizinho encobria sua visão, mas o que
ocorreu abaixo do décimo andar, ele delineou: “o corpo
descendo”... Concentrou-se na velocidade que alcançou, tomou um
susto no momento em que ele se espatifou no chão.
-
“Será que alguém filmou a queda inteira? Gostaria de ver se minha
imaginação está fiel à realidade” – murmurou pensativo.
André
Gustavo queria ver como o seu trabalho, perfeito, foi finalizado.
Assistir ao desfecho de sua magnífica obra-prima seria uma
recompensa, que a imprensa poderia lhe proporcionar em sinal de
retribuição a tanto trabalho fornecido. Afinal ele só produzia
notícias de primeira linha!... No menor dos pedidos: merecia receber
um elogio pelo tiro certeiro na testa.
-
Impecável...! Invejável...! – se pôs a elogiar-se e sorriu
soberbo. Sentia-se superior aos assassinos comuns que, no momento da
raiva, sacam de uma arma e atacados de tremedeira descontrolada,
disparam enfurecidos. Às vezes, atingindo inocentes que caminham
pelas calçadas. Ele não, ele era calmo, não gritava nem tremia.
Apenas, matematicamente, apertava o gatilho e presenciava sua obra
concluída, silenciosamente, despencar por terra.
André
Gustavo, conscientemente, estirou-se no sofá e sossegou relaxado.
Seu serviço limpo só merecia reconhecimento e não queima de
arquivo. Não é assim o procedimento normal entre bandidos, eles se
respeitam. As leis são rigorosas nessa classe ilícita e quem sai da
linha, perde o crédito e, às vezes, a vida. Seu Contratante
seguiria essa nobre conduta. Ainda nem havia recebido a última
parte, é verdade, mas, com certeza, ele viria pessoalmente
entregá-la para agradecer e elogiar o serviço primoroso. Talvez até
exclamasse:
-
Bravo!... Bravo...! – para o grande final que, a essa altura, já
devia ser de seu conhecimento.
V
- VIVENDO COM FANTASMAS
André
Gustavo acabou dormindo, sonhou e acordou às duas horas da tarde
espreguiçando-se pela má posição que mantivera no sofá. De
consciência tranquila foi ao banheiro; lavou o rosto, escovou os
dentes e fez xixi. Voltou para a sala e pensou em ir almoçar.
Lembrou-se que nem havia passado os olhos no jornal. Precisava,
antes, saber quais comentários saíram a respeito dos acontecimentos
que ele provocara no domingo.
André
Gustavo ria a cada passagem em que o jornalista, achando-se adivinho,
arriscava palpites infelizes. A realidade, descabelada, passava tão
longe de sua narrativa, que ele, incrédulo, não se continha;
esbanjava-se nas gargalhadas, até lágrimas escorriam pelo seu
rosto. Quando virou a página, arregalou os olhos. Estampava,
encarando a câmera, numa foto instantânea, a face ensanguentada de
Linguiça Grossa - um amigo de profissão. Acima da foto, o cabeçalho
em negrito, relatava: Morto pela polícia: Neumiro Luis, vulgo
“Linguiça Grossa”. Abaixo descrevia alguns de seus feitos.
Condecorado com o título de “cabeça” da quadrilha, mentor do
assalto a um banco no interior do Estado e suspeito de vários outros
golpes e homicídios, que André Gustavo sabia de quem fora a real
autoria.
André
Gustavo não conseguiu ler mais, suas vistas turvaram. Seu cérebro
girou numa rotação de roleta-russa, em que os números sorteados
caíam numa bandeja, despejando as cabeças que deveriam rolar
doravante. Antes que a sua aparecesse, ele travou o pensamento:
-
A polícia não é trouxa... vai ligar uma coisa na outra e
descosturar toda a teia que envolvia Linguiça Grossa.
André
Gustavo percorreu na paleta mental, girando a roleta do medo ao
avesso, buscando o possível traidor.
-
Jamais a polícia chegaria a ele passando pelos seus seguidores.
Haveria um confronto sangrento. Aquilo é um arsenal invulnerável.
Ninguém entra sem ser visto... E o jornal só faz menção das armas
apreendidas. Ele não foi morto pela polícia. Queimaram o Linguiça
no morro... Repetiram o truque da falsa emboscada... e na troca de
tiros largaram o defunto para trás.
A
cada desconfiança que brotava em sua mente, um tiro silencioso
sobrevoava a distância entre ele e a casa vizinha. André Gustavo
sentia sua cabeça sendo perfurada por um projetil anônimo. Largou o
jornal. Atormentado, correu para a janela e fechou todas as cortinas.
A penumbra da sala lhe parecia um refúgio seguro. Ninguém poderia
localizá-lo ali. Respirou algumas vezes, profundamente.
-
Que diabo será isso! – André Gustavo pegou o jornal no chão.
Abriu cuidadosamente na página e releu alguns detalhes.
-
Cacete! Tá me cheirando a queima de arquivo... ele sabia todo o
esquema do contrabando, inclusive a rota e... e eu sei demais. A
sensação que senti na praça... alguém me alertou!... Linguiça
Grossa! – André Gustavo entrou num labirinto espiritual, não
conseguia raciocinar diferente. Prosseguiu a leitura querendo crer
que se tratava de uma confusão, o jornal teria misturado a
fotografia de Linguiça Grossa com a matéria de outro traficante
morto.
“Neumiro
Luis, conhecido contrabandista da Capital, foi morto durante uma
troca de tiros com a polícia que surpreendeu seu bando em plena
Avenida Princesa Isabel. Ainda sobre Neumiro Luis, vulgo Linguiça
Grossa, desvendou-se agora, segundo o delegado de plantão, que o
mesmo já participara de vários assaltos, assassinados e sequestros
ocorridos na Grande Vitória. Com a prisão de alguns comparsas e
apreensão de armas, a polícia técnica, através do exame de
balística, acredita que elucidará vários crimes até então
obscuros para a justiça.” – No parágrafo abaixo o
jornalista emitiu sua opinião: “A violência é proporcional ao
desnível social e as autoridades, responsáveis por este controle,
cruzam os braços. Além do que, amenizam as leis, já que quase a
totalidade dos crimes, é praticada por pessoas que deveriam estar
atrás das grades em consequência de delitos praticados
anteriormente, no entanto, por falhas na legislação, encontram-se
em liberdade.”
-
Caralho, alguém está tramando um golpe pelo avesso... Eliminando
cabeças... Pode ser o Xavier... Queimo esse infeliz!... O
Cortitelo!... Será o Matusquela?... O Benício?... Ou o... – o
pressentimento de André Gustavo veio acompanhado de uma espetada na
costela, num temor correlato balbuciou: - “o Contratante!?... Não
posso dar bandeira... o cara tem capangas até dentro da cadeia.
Queimaram Linguiça Grossa... um pobre diabo!... Foi ele mesmo, agora
tenho certeza. O filho da puta me quer morto também. Eliminei todos
os seus inimigos, agora seu único calo sou eu... Burro! Idiota que
sou!... Preciso fugir. Sair daqui. Droga!... Confiar em quem nessa
hora?... Débora?... Não, não adianta... é o segundo lugar que
irão procurar e... e eu ainda estou no primeiro... em casa!”
André
Gustavo intencionou fazer as malas, mas como sair carregando malas
pela rua? Chamaria um táxi e se instalaria num hotel.
-
Não. Vou mudar para um apartamento... com portaria é mais seguro.
Precisam se identificar. Recebo só quem eu quero. Dou uma grana ao
porteiro para dizer que não estou...
Nesse
instante seu celular tocou. André Gustavo tomou um enorme susto.
Queria que nem tivessem inventado tal aparelho no mundo.
-
Alô...
-
André...! Parabéns... – era o Contratante - pela festa impecável
de seu aniversário ontem... perfeita, melhor impossível. Olha, seu
presente está aqui comigo. Pode vir buscá-lo. Você fez por
merecer.
-
Não daria para depositar...
-
Não foi esse o presente que lhe prometi.
-
É que eu... vou viajar... é urgente...
-
Então lhe entrego quando voltar!
-
Espere... É que eu... preciso dele... o motivo...
-
Nada feito. Somente em suas mãos e aqui. O presente não pode ser
repartido... você sabe. O máximo que posso fazer é deixar com a
minha secretária.
André
Gustavo, após todas as suas ilações inquietantes, temia buscar o
presente. Preferiria perder a metade a pôr a vida em risco.
-
Está bem, então... pego depois da viagem.
O
final foi seco, sem despedida nem mais elogios.
-
Aguardo – e desligou.
Só
então André Gustavo reparou que estava todo suado. A apreensão que
sentiu, as ideias que brotaram, as palavras que vieram à sua boca e
se viu obrigado a engoli-las, tudo isso o deixou sem respirar,
causando uma fadiga de cansaço sem-fim. Pensou em tomar uma ducha
fria, mas ao mesmo tempo voltou-lhe a cisma.
-
Preciso fugir...
Perturbado,
correu para o quarto, pegou três mudas de roupa numa cômoda,
escondeu sua arma no bolso de uma bermuda e enfiou tudo na mochila.
Tirou uma caixinha de música do fundo falso da gaveta e escolheu
algumas joias. Abriu a porta vigilante. Ligou o carro e aguardou o
portão automático, vagarosamente, se abrir. Arrancou a toda
velocidade. Talvez, executores, estivessem a caminho para liquidá-lo
dentro de casa. Como a rua era uma reta de sentido único e ele não
foi seguido, estacionou a uma distância segura. Espreitou pelo
retrovisor se algum veículo pararia defronte ao seu portão.
Enquanto mantinha vigília, elaborava seu plano paranoico.
Venderia
o carro, pois o mesmo já era muito conhecido. Visitaria uma
imobiliária. Alugaria um apartamento num ponto que fosse
estratégico, quase em frente à sua casa. Não poderia perder o
portão de vista. Antes de arriscar-se pelo restante do dinheiro,
precisava se garantir. A primeira providência era certificar-se de
que ninguém o desejava morto e a segunda, embora muito improvável,
era ter paciência e aguardar o chamado do Contratante para mais um
serviço na sua especialidade.
André
Gustavo cansou de manter sentinela dentro do carro. Saiu disposto a
concretizar as fases de seu plano. Vendeu seu carro. Conseguiu alugar
um apartamento bem na esquina de sua casa. Não comprou mobília
nova, apenas um colchão, um frigobar e um pequeno televisor.
Entocou-se no apartamento. Pedia pizza e comida pronta. Não fazia
mais a barba, nem cortava o cabelo. Toda noite, após um bom tempo de
vistoria na movimentação do ambiente, descia e caminhava até o
portão. Entrava rapidamente. Abria a caixinha do correio para pegar
a correspondência e cuidadosamente se retirava.
Duas
semanas e a vida de guarda-noturno tornou-se um marasmo. André
Gustavo passou a ter clara noção do mal que fizera a si e ao povo.
Embora se julgasse potencialmente superior a qualquer adversidade, o
Contratante o preocupava. Seus olhos buscavam, insistentemente,
alguma pessoa suspeita, que rondasse pela calçada de capa em dia de
sol, ou de blusa de couro com as mãos nos bolsos.
Depois
relaxou e imaginou: se o Contratante quisesse eliminá-lo, teria
efetuado, a contento, tudo no mesmo instante. Ele seria o terceiro
alvo do domingo. Ficaria na mira da traição. Morreria inocentemente
como morreu o assassino do Senador. Teria, na cena do crime, um
terceiro atirador oculto. Morreriam dois assassinos e um inocente, o
quarto elemento sairia vivo.
-
Não, o Contratante não arriscaria. Haveria grande possibilidade de
dar errado. O terceiro poderia me liquidar antes de eu liquidar o
segundo. Assim o primeiro alvo sairia ileso. Eliminar por etapas é
mais provável de sucesso. Uma operação múltipla, geralmente,
acaba em fracasso. No entanto, se eu morrer agora... quem vai ligar a
minha morte à do Senador?... Ninguém – se respondeu notando que
falava alto e sozinho.
André
Gustavo não podia mais andar pela rua só para encantar-se com o
movimento, como sempre fazia. Achava-se um felizardo que não
desperdiçava horas e horas em buzinadas no trânsito engarrafado.
Porém, essa liberdade lhe fora tolhida. A mente recolhida num
apartamento pequeno. Aprisionado pelo segredo. E se fosse mesmo só
paranoia? Se não houvesse ninguém atrás dele? Sua casa estava lá,
seu endereço era o mesmo; por que não vinham logo? Ou aguardavam
que ele aparecesse em determinado lugar que costumava frequentar?
Haveria alguém mais precavido e meticuloso do que ele trabalhando
num planejamento primoroso? Uma morte sob encomenda que não
denotasse ligação com vingança, queima de arquivo, crime
passional, acerto de contas? Um astuto estrategista, que maquinasse
um genial esquema, no qual, alguém fosse assassinado e todo o
ocorrido não passasse de um mal-estar repentino da vítima? As mais
incríveis possibilidades de uma emboscada foram gotejando em sua
mente sugestiva e uma transbordou:
-
Envenenamento!!... Preciso me acautelar. Variar a comida... Pedirei
cada dia em um restaurante diferente... senão posso apodrecer aqui.
Bem que papai dizia:
-
O segredo é a opressão do confidente. Droga!...
Estou encrencado. Vou enlouquecer com essa psicose de perseguição.
Espero que como surgiu do nada... também desapareça... Ou serei
obrigado a tirar férias...?!
Realmente,
André Gustavo deveria fazer uma longa viagem. Sair de Vila Velha por
uns meses. Esquecer Vitória. Curtir a vida por um bom tempo.
Abandonar mesmo o trabalho. Na volta daria uma desculpa esfarrapada.
Inventaria que uma tia, carioca, que considerava como mãe...
falecera e, no velório, se enrabichou com uma garota no Rio de
Janeiro, Salvador, Brasília ou Fernando de Noronha?... Qualquer
destino lhe servia.
-
“Besta que sou!... O pavor da perseguição me deixou tonto. Lógico
que ninguém vai vir me procurar agora!... O Contratante está
pensando que eu viajei!... Portanto, estou longe daqui! A essa altura
sabe até que vendi o carro” – concluiu eufórico. Em seguida
analisou temeroso:
-
“Ou sentiu... pela minha voz... hesitante... que eu estava
blefando?... Droga!... Inexperiente eu sei que ele não é.”
Foi
garimpando nessa dúvida que o celular tocou. Para disfarçar, ligou
a televisão e se afastou para o quarto. Ainda ouviu o som do
aparelho, no qual um pastor pregava: se você se sente diferente
dos outros... saiba que Deus não faz duas pessoas iguais, dois
sorrisos idênticos, no entanto somos retalhos do mesmo tecido...
André
Gustavo apertou o botão do aparelho e antes de dizer “alô”
pediu licença para algumas pessoas hipotéticas:
-
Senhores, me deem licença por um instante.
André
Gustavo pisou forte no próprio quarto e num tom despreocupado,
atendeu:
-
Alô...
O
silêncio prolongado do outro lado da linha, o deixou no mesmo
suspense que deduziu ter provocado com a encenação que praticara.
-
André Gustavo, onde você está?... Viagem demorada...!
Era
o Contratante. O que diria?... Que voltou?... Não, ainda era cedo.
Talvez viajasse mesmo. Uma tia morreria. Conheceria alguém
interessante...
-
Oi!... Que surpresa agradável, mas... aviso que ainda estou de
férias, nada de tarefas...
-
Não, não é trabalho. Apenas estranhei a demora... mais de três
semanas...!
-
Aqui está bom... – depois segredando. - Conheci uma garota... Acho
que vou demorar.
-
Por esse motivo vale a pena – insinuou o Contratante mostrando
aprovação. - Está no Rio?... São Paulo?... – duas perguntas de
curioso indiferente.
-
Na verdade... Estou rodando...
-
É bom assim... sem destino. Mas você disse que precisava do
presente para viajar?!
-
Vendi meu carro e... peguei algum emprestado...
-
Já inutilizou todos os presentes?... Sem falar que a metade do
prêmio anterior foi magnífica...!
-
É... eu divido os brinquedos que ganho...
-
Ah!... Bom...!... Mas azar o seu. Assim que retornar me comunique.
Seu brinquedo novo está bem guardado numa maleta... com a minha
secretária... se quando vier buscá-lo, eu não estiver, diga assim:
“sou o sobrinho preferido do Chefe... que veio pegar seu presente
de aniversário”. Ela vai entender.
-
Ah!... Muito bem, Chefe, mas fique... tranquilo – André Gustavo
precisava demonstrar interesse pelos negócios. - Está tudo sob
controle... por aí?
-
Tudo. O serviço funciona normalmente. Apenas mudei de endereço e de
secretária, mas nesse telefone você sempre vai me achar.
-
Então está ótimo. Quando eu voltar... a gente conversa.
-
Certamente... Até outro dia.
-
Até... – André Gustavo deixou o aparelho ligado de propósito e
comentou. - Senhores, podemos prosseguir o jogo, pois... –
desligou o celular. A encenação não era mais necessária.
Agora
não havia jeito, o Contratante, de fato, queria localizá-lo. Isso
se tornou patente para André Gustavo.
-
Não usarei meu esconderijo secreto como fuga. Preciso encarar a
realidade. Aquela casa é para ser usada como último refúgio, numa
emergência... e para eu atacar, nunca para me defender.
André
Gustavo sentiu que o Contratante sabia da venda do carro, por isso
acreditou também no dinheiro emprestado.
-
“Uma pequena verdade pode esconder uma grande mentira” –
já dizia seu pai.
André
Gustavo queria firmar seu pensamento, mas outra lembrança veio como
um aviso:
-
Filho, busque pelos seus sonhos quando estiver acordado, pois a
vontade de vencer, às vezes, leva o derrotado à vitória.
VI
- ENCARANDO A REALIDADE
André
Gustavo precisava esperar escurecer, fazer as malas e fugir; não
podia permanecer quieto para conferir moeda falsa.
-
“Embarcar no aeroporto de Vitória é muito arriscado” –
refletiu. – “Assim que escurecer eu pego um táxi e embarco longe
da rodoviária... para o Rio de Janeiro e de lá... só Deus sabe.”
André
Gustavo tinha razão. Seu dote natural de especialista em
planos de fuga processava como um computador analisando as possíveis
mexidas das peças num tabuleiro de xadrez. No aeroporto Eurico
Salles correria maior risco, poderia encontrar um conhecido ou até
mesmo já estar sendo rastreado e aguardado. Embarcaria fora da
Rodoviária. Viajaria nômade por alguns lugares. Talvez fosse mesmo
se esconder numa ilha.
-
“Fernando de Noronha... no meio do oceano Atlântico... quem
poderia estar por lá?... Probabilidade quase zero de encontrar um
conhecido” – cogitou convencido.
O
Contratante permaneceria ocupado com diversos afazeres, cercado pela
família do Senador Marcelo, seria a pessoa a quem recorreriam nessa
hora que o mandachuva, o centro das atenções, desapareceu,
inesperadamente de cena. Haveria muitas promessas pendentes, todos
morrem cheios de planos e ações inacabadas. O fim, sempre nos pega
desprevenidos. Ainda mais como foi a morte do Senador; nos últimos
meses, sua preocupação estava voltada exclusivamente para a
campanha e com os discursos. Os entraves familiares, óbvio, foram
relegados para após as eleições.
Somos
acostumados assim, transferimos tudo para um futuro incerto.
Desertamos dos amigos, do convívio social, nos escondemos entre
quatro paredes ou envolvemo-nos publicamente naquilo que,
aparentemente, se apresenta como o nosso único objetivo, que, às
vezes, fica incompleto. Poucos têm o privilégio de conseguir uma
segunda chance para se redimirem, a maioria parte sem tempo de se
retratar.
Da
janela do apartamento, com a rua já às escuras, André Gustavo fez
a última vistoria visual no portão de sua casa. Ligou para a
empresa de táxi. Fechou o apartamento e desceu sem dar nem boa-noite
ao porteiro, apenas acenou com a cabeça. Porém o porteiro fez um
sinal chamando-o para ver a televisão. Exibia novamente o tumulto
que ocorreu após o Senador ser atingido. O corre-corre de toda a sua
segurança na busca pelo assassino. As rádios patrulhas e
ambulâncias em alvoroço. O repórter desfechava a notícia com o
corpo do suposto meliante estendido no asfalto e propagando:
“provavelmente o atirador foi morto por um comparsa que, após o
crime, arremessou o corpo da cobertura, talvez, para não dividir a
recompensa.”
-
Já vai pra mais de três semanas que não falam noutra coisa –
comentou o serviçal. – O Senador era muito querido aqui na Região
da Grande Vitória e até em outros municípios. Só que eu acho que
esses repórteres fazem muito estardalhaço... espalham boatos...
inventam até notícias.
-
Concordo com você, mas eles vivem das tragédias alheias! Se não
acontece nada... eles morrem de fome! – argumentou André Gustavo
num sorriso chocho, devido a manchete ser trágica.
-
Veja só você – prosseguiu o porteiro -, já estão dizendo que o
Senador tinha uma amante. Que foi crime passional...! O marido
contratou um atirador e matou o cara, jogando seu corpo prédio
abaixo. Pode uma tolice desse tamanho, ser verdade?... Atrapalham
dando pistas falsas para a Polícia. Com isso atrasam o desfecho. É
um disse que disse dos diab... – retraído, calou a boca porque
vinha entrando uma senhora puxando um menino pelo braço.
Depois
recomeçou garboso:
-
A meu ver a polícia já deve saber como foi e quem mandou. Creio que
não vai mencionar nas entrevistas para não espantar a cria. Cerca o
crápula de mansinho e depois dá o bote. A não ser que seja um
protegido de alguém importante!... Que possui essa tal de
“imunidade”... Aí a história muda de figura... A polícia faz
vistas grossas... busca no lugar errado... enrola mesmo. Depois do
inquérito quase pronto... a papelada é entregue para outro delegado
apurar o caso. O novato precisa esmiuçar aquele calhamaço desde o
começo... e a demora, proposital, cai no esquecimento da gente.
O
porteiro, repentinamente, mudou de assunto, passou a reclamar dos
acontecimentos em geral:
-
O Governo envia tropas para fazer segurança em outros países,
enquanto o nosso fica largado. Viver é uma roleta-russa constante.
Quando um demente alcança o poder e encontra seguidores, é um
perigo iminente. Por que o homem quer conquistar os astros? Para
destruí-los? Se não controla o próprio planeta... o que fará
além?... Gasta muito, pagando projetos faraônicos para os seus
protegidos, que depois de elaborados não saem do papel. Paga mais em
projetos do que em obras realizadas... O Governo está tratando muito
mal a sua galinha dos ovos de ouro!... Veja você: se preocupam com
os jovens que bebem e dirigem. Fazem fiscalizações nesses pontos de
encontro, mas nos pontos de encontro da mendicância e da miséria
não aparece ninguém. Tem servidor público, que quando fica em casa
dormindo, dá menos prejuízo pra nós... Vê você se tem
cabimento... um jovem de 16 anos não pode dirigir, não pode ser
responsabilizado criminalmente, não pode casar sem o consentimento
dos pais, não pode fazer um monte de coisas... mas dão a ele a
maior responsabilidade de todas... que é a de escolher os
governantes...! Alguém deve estar brincando de sacanear o povo...
não?! – o porteiro, cansado de falar, ansiou uma resposta.
-
Também concordo com sua percepção, é coerente... no entanto,
aconselho não gritar sua revolta por aí à toa... Meu táxi
chegou... Até logo.
André
Gustavo saiu como quem vai visitar um amigo no bairro vizinho. Ergueu
o pescoço automaticamente em direção à sua casa. Avistou dois
elementos que atravessavam a rua correndo e entraram saltando o muro.
Sem poder parar, nem demonstrar estranheza, ele entrou no táxi.
Pediu para o motorista esperar um instante. Abriu a mochila e fingiu
procurar algo.
-
“Caramba!... Eu estava certo! Querem acabar comigo. Preciso rever
meu plano novamente. A primeira etapa acabou de ser queimada agora.
Droga!”
-
Para aonde vamos, Senhor? – questionou o taxista.
-
Um momento, deixe-me ver se estou com um documento... aqui... na...
mochila... é importante... – continuou vasculhando alguns papéis.
André
Gustavo aguardou para ter certeza que aqueles dois não entraram em
seu quintal por coincidência. Talvez fugissem da polícia ou até os
conhecesse.
Não
teve dúvidas que errara no seu primeiro plano. Não deveria simular
uma viagem e sim, ter lançado seu velho carro num precipício
próximo ao mar. Pois, com sorte, em um ou dois dias seria
localizado. Não deixaria nem a possibilidade de testemunhas.
Passaria uns duzentos metros do local escolhido para certificar-se
que nenhum andarilho o surpreenderia. Retornaria observando
calmamente a estrada. Frearia o carro abruptamente, largando para
trás as marcas dos pneus no asfalto só para facilitar nas
investigações. Posicionaria o veículo na descida a uns vinte
metros da beira do abismo. Engrenaria a quinta marcha, afundaria a
embreagem com uma pedra e soltaria o freio de mão. O carro desceria
pegando velocidade. Poderia até disparar sua arma, várias vezes,
perfurando a lataria e estilhaçando os vidros. Deixando assim, mais
uma evidência de assassinato. Os jornais, divulgando a notícia,
divagando em suposições, como sempre imaginativas, diriam que seu
corpo havia se perdido nas águas profundas do oceano e ele estaria
livre. Mudaria de identidade. Viveria honestamente em algum lugarejo
desse extenso Brasil ou buscaria abrigo em algum outro país. André
Gustavo controlou sua perplexidade pela avaliação atrasada.
A
mochila não era tão grande, nem havia muita coisa além da roupa.
Não podia demorar. André Gustavo já não sabia para onde iria.
Ordenou, calmamente, ao taxista.
-
Shopping Vitória, por favor. Mas... sem pressa. Acho que vou...
comprar... algumas coisinhas...
André
Gustavo torceu para que quando estivesse passando em frente à sua
casa os indivíduos saíssem, mas não adiantou, através do vidro do
táxi ele só avistou a escuridão do quintal.
André
Gustavo não poderia denotar preocupação para o motorista que já
puxava assunto sobre o trânsito, o tempo e as praias. Chegou até a
perguntar se ele estava em Vitória a passeio. André Gustavo,
atordoado, com o cérebro precisando de liberdade para planejar,
respondia com poucas palavras, até o taxista desconfiar e calar-se.
Com
a mochila a tiracolo, atento a todos os passantes, pagou ao taxista e
entrou no Shopping Vitória. Como não havia traçado ainda uma
sequência harmoniosa de ocorrências, dentro de um plano racional,
achegou-se numa camisaria para vasculhar, através da vitrina, os
corredores do shopping ao longe.
Um
vendedor veio atendê-lo. André Gustavo desculpou-se:
-
Só estou olhando.
-
Fique à vontade, senhor. Necessitando de quaisquer esclarecimentos é
só chamar – recuou o vendedor educadamente.
André
Gustavo despistou um pouco mais e, com a tranquilidade costumeira,
retirou-se da loja.
-
“Vou comprar a passagem aqui, embarcar longe da Rodoviária e
desaparecer. Talvez Bahia, Pernambuco, as praias do nordeste... mas
se estão me procurando em casa... posso ir de avião...” -
divagava solto quando uma pesada mão pousou sobre seu ombro. André
Gustavo gelou.
-
“Já me encontraram...?!”
Voltou-se
com um sorriso espontâneo nos lábios e dois sujeitos,
mal-encarados, lhe perguntaram em coro:
-
Vai demorar muito no Shopping?
-
“Capangas de Benício!?... Só pode ser a mando do Contratante!...
Droga!”
André
Gustavo, acostumado a não demonstrar surpresa, fez de conta que não
os conhecia e sem desfazer o sorriso, perguntou com ar inocente:
-
Quem são vocês?... Desculpem, não estou reconhec...
-
Por favor, nos acompanhe – ordenou um deles.
-
Posso saber... para quê...?... – indagou com reticências que
exigiam um complemento.
-
Para o seu bem – foi o que ouviu do outro elemento que,
circunspecto, fez um gesto com a cabeça indicando a direção a
seguir.
André
Gustavo agora urgia de um verdadeiro plano “F” - de fuga -
qualquer outro, B, C ou D, não solucionaria seu dilema. No meio de
tanta gente, seria bem provável que conseguisse. Eles não
arriscariam sacar as armas, tampouco atirar dentro do Shopping, mas
em contrapartida seria visto por todos e filmado pelas câmeras de
segurança. A decisão requeria também pressa e frieza, caso
contrário estaria perdido, ou morto, se saísse no lugar errado,
pois, com certeza, lá fora estariam muitos outros à sua espera. A
curiosidade ainda o fez conjecturar:
-
“Quanto será que o Contratante ofereceu?... Daria o dedo mindinho
para saber...”
André
Gustavo, mesmo sem conhecer a sequência lógica do plano F, decidiu
por ele. Ao passar por uma loja que dava saída para os fundos do
estacionamento, sem que eles esperassem, adentrou rápido nela. Os
dois, pegos desprevenidos, quando pensaram em segui-lo, viram André
Gustavo já trançando no meio das araras de roupas. Abaixou-se
avisando para as pessoas próximas a ele:
-
Estão tentando um assalto, cuidado - e sumiu entre as araras,
gôndolas e balcões, engatinhando pelo chão.
Os
dois capangas entraram na loja recebendo os olhares desconfiados dos
vendedores e compradores. Mesmo assim prosseguiram na busca.
André
Gustavo saiu no estacionamento e louco para encontrar um táxi livre
assim que alcançasse a rua. Só não podia demonstrar que estava
fugindo e sim, apenas com muita pressa e gritou:
-
Táxi!... Táxi...!!!
Por
sorte, um, de vidros escuros, parou. Ele entrou sem pensar:
-
Aeroporto... por favor.
-
Está atrasado, senhor? – perguntou o taxista acelerando forte e
despertando a atenção.
-
Um pouco - André Gustavo avistou os dois que saíam e olhavam para
todos os lados. - Mas não precisa tanta pressa – completou com
receio de que os pneus cantassem na mudança de marcha. – Temos
trinta e cinco minutos ainda.
-
Ah, a essa hora da noite não tem trânsito... chegaremos com
folga... tranquilamente – o motorista diminuiu a velocidade.
-
Mas... não tão devagar... prefiro esperar lá – pediu André
Gustavo.
VII
- UM MOMENTO SUTIL
André
Gustavo gastou alguns minutos dentro do banheiro do aeroporto,
precisava se prevenir para não cometer nenhum deslize. Sentado no
vaso sanitário, calmamente, analisou a sua situação: a essa
altura, o Contratante já sabia de tudo, talvez o rastreasse de longe
e repassasse as informações para os capangas de Benício, quiçá
já não estivessem de tocaia no portão de embarque, ou disfarçados
de passageiros que compram suvenires inúteis e passeiam tomando
sorvete pelo saguão. Não correria mais o risco de ser descoberto.
-
“Preciso sair daqui. A essa hora da noite minha opção é só
uma...”
O
celular tocou, assustando-o. Era o Contratante.
-
“O que ele quer comigo?... Não creio que se esqueceu de me avisar
algo importante. Não posso atender. Vou esperar cair na caixa
postal” – André Gustavo abafou o aparelho para que não fizesse
muito barulho, mas logo a ligação foi interrompida.
-
“Desligou... Ele deve saber que estou no aeroporto. Assim como
deduziu que eu estava em casa... devido à proximidade do
apartamento. Estou mesmo sendo rastreado... pelo celular...!”
André
Gustavo retirou o chip e a bateria do aparelho. Pensou em se desfazer
de tudo, hesitou, mas por fim jogou as peças no vaso e apertou a
descarga. Todos os seus contatos foram, literalmente, por água a
baixo.
-
“Devia ter deixado o celular no apartamento. Agora é tarde.
Droga!... Isso é que dá não planejar a fuga com tempo!”
André
Gustavo observou por alguns segundos a saída. Tal qual paraplégico
retirou-se mancando de uma perna. Entrou num táxi e apenas ordenou
tocar para o Centro de Vitória.
Enquanto
o táxi cortava o trajeto, André Gustavo matutava: entraria num
hotel da Vila Rubim e passaria um bom período ali. Poderia ajeitar a
barba crescida, cortar o cabelo em outro estilo. Criaria um novo
rosto, até uma nova identidade, mas os capangas de Benício estariam
de butuca ligada.
-
“Godofredo Zebu!” – lembrou André Gustavo. – “É inimigo
mortal de Benício. Capanga dele não entra lá!” – e ordenou: -
Motorista, suba o Morro do Junqueira.
Seu
salvo-conduto para proteger-se dos capangas de Benício. A desavença
com Godofredo Zebu era antiga e, mais cedo ou mais tarde, um dos dois
teria que desocupar a cidade. André Gustavo valeu-se disso, saltou
do táxi e, depois de se apresentar, declarar a existência da arma
na mochila, ser longamente revistado, ter suas roupas revirada,
pousou no quartel-general de Godofredo Zebu. Entulhou-se sossegado no
Morro do Junqueira.
-
Olha, André Gustavo – abriu-se Godofredo Zebu sem cerimônia -,
toma a sua arma, descarregada, é claro. Quando sair tudo lhe será
devolvido. Sei que você está fugindo dos capangas de Benício, por
isso não vou lhe negar abrigo. Ele quer eliminar você tanto quanto
a mim. Você, eu não sei o porquê. Só espero que não seja mais um
truque sujo seu, para se aproximar de mim... a mando dele.
-
Godofredo, não sou tão besta assim!... Entraria eu na toca do
leão?... Também não sei as razões de Benício. Talvez eu tenha
atravessado em seu caminho sem saber. Vai entender aquele imbecil
temperamental! – disfarçou André Gustavo.
Godofredo
Zebu estava fortemente vigiado. Sabia que André Gustavo não
planejava assim seus assassinatos e o tratou como convidado. Colocou
dois copos numa mesa, abriu uma cerveja, encheu os copos e apontou:
-
Esse é o seu... Mas sabe, André, Benício realmente está agindo de
maneira esquisita ultimamente – comentou Godofredo Zebu -, eliminou
Linguiça Grossa, Mão de ferro e Tonho Zoião... só que eu sei!...
E todos já trabalharam para o Contratante.
André
Gustavo não demonstrou assombro ao olhar expectante de Godofredo
Zebu.
-
André, apesar de sua longa ausência em nosso meio... sei muita
coisa a seu respeito.
André
Gustavo desconhecia o vínculo empregatício dessa cambada de
malfeitores com o Contratante, mas serviu para aumentar a sua
convicção. Godofredo Zebu narrou outros fatos do morro, até entrar
nos pessoais.
-
Vou lhe contar um episódio esquisito que participei dentro da
cadeia. Aquela perto da Rodovia, no entroncamento de Guanapari. Assim
que pus os pés lá dentro, fui informado de um plano de fuga,
sussurrado no meu ouvido por um indivíduo desconhecido. Chegou ao
pátio como quem vem acender seu cigarro e me repassou o recado. A
fuga se daria através de um túnel. A terra da escavação era
jogada na horta comunitária, na lixeira, na água do vaso sanitário,
no tanque e até na pia... Conhece Garganta de Ouro?
André
Gustavo confirmou com a cabeça.
-
Pois é, ele estagiava por lá e cantarolava: terra molhada vira
lama, terra seca na poeira evapora, assim que você for pra cama,
deixe a sujeira das unhas lá fora. Sabe o que aconteceu com ele,
André?
André
Gustavo disse um “não” apenas no gestual.
Godofredo
Zebu, extasiado, relatou:
-
Rapaz, o malucão apostou um racha, não valendo grana nenhuma, com
um desses “filhinho de papai” que anda de carrão envenenado...
Saca?... Meu irmão André!... Visitei o Garganta no barraco dele. Dá
dó de ver o pedaço de gente. Mesmo assim o infeliz está
conformado!... Quando me viu desabafou:
-
Mano, por alguns segundos de descontrole eu perdi o controle de minha
vida. Por que fui dar atenção para aquele frangote espinhento que
parou ao meu lado no semáforo... saímos em disparada feito dois
alucinados em direção à tragédia. Eu, que jogava bola,
mergulhava, desfilava na escola de samba... hoje só mexo o
pescoço... dependo de alguém para tudo. Aquele abobado perdeu a
vida... e eu, os movimentos. Ainda agradeço a Deus por não ter
colocado nenhum inocente em nosso caminho naquele instante.
-
Mas Garganta de Ouro era bom motorista – disse André Gustavo. –
Ele já dirigiu em várias fugas que eu sei.
-
Inclusive trabalhou pra mim – assegurou Godofredo Zebu. - Mas todo
mundo é bom motorista... até o dia que deixa de ser... e quebra a
cara. Mas vamos voltar ao assunto da cadeia.
Deu
três goles saborosos do líquido e prosseguiu:
-
Numa tarde de sol a pino, todos descansavam a preguiça. Porque
naquele dia ninguém teve coragem de cavar um centímetro de túnel.
Do lado de fora o calor era insuportável, dentro do buraco parecia
um forno. O jeito encontrado foi fazer um revezamento noturno. Cavar
no escuro.
-
Tatu não usa lanterna – gozava Azulão... Conhece também?
Desta
vez André Gustavo respondeu, achou que seria indelicadeza só
balançar a cabeça.
-
Conheço... aliás, há muito tempo.
-
É mesmo...! Ele é chegado na idade, mas tá vivinho por aí e
andando firme ainda!... Pois bem, a escavação não podia atrasar,
pois a fuga tinha dia e hora certa para acontecer: às 23:00 horas,
na véspera da revista mensal. Os guardas afrouxam a vigilância,
porque sabem que perto desse dia, todos procuram ser um pouco santo.
Manja?... Cavei muitas vezes naquele buraco apertado. Confesso que
não pretendia fugir, pelo menos não naquela época. O lado de fora
estava perigoso pra mim – Godofredo Zebu sorriu folgado. – Porém
eu não queria fazer inimizades nem contrariar a turma dentro da
cadeia, era muito arriscado para o meu corpo. Mas nós fomos
surpreendidos dois dias antes do prazo. O silêncio da madrugada foi
estrangulado pelo metralhar dos cassetetes nas barras das grades. As
trancas automáticas destravaram todas ao mesmo tempo, dando uma
chicotada nos tímpanos dos sonolentos. A tropa de choque entrou pra
arrasar. Foi pancada para todo lado.
-
Tirem a roupa... todos para o pátio. Agora! - Foi
a ordem imperiosa, esbravejada pelo guarda.
-
Caralho, mais essa... nem deixam a gente dormir em paz! –
resmungou Filósofo. Ganhou esse apelido pelas asneiras que vomitava
e pelas poesias que fazia. Ele até me deu uma. Eu mandei imprimir e
espalhei pelo morro. Depois vou lhe mostrar.
-
Alguém deve ter alcaguetado nossa tramoia. Eu capo o desgraçado –
jurava ele tirando a cueca.
-
Saímos um a um em fila e nos dispusemos de cara para muro. Só se
ouvia passos de botinas pesadas e apressadas. Ninguém era besta de
olhar para trás. Ficamos ali, sem dar um pio, por cerca de três
horas. O sol começava a nascer e esquentava a nossa bunda. Pelos
suspiros que eu ouvia, a impaciência venceria Filósofo. Bode Rouco,
esse eu sei que você não conhece, pois é de outro estado, herdou
uma tosse incurável na solitária. Ele era o único que podia se
pronunciar pela garganta catarrenta. O pobre tossiu de se engasgar e
começou a puxar o ar com esforço. Do meu lado esquerdo, de braços
cruzados e balançando uma das pernas ficou o Touro Amuado... outro
desconhecido seu. Por sua despreocupação, deduzi que para ele não
fazia diferença aquela revista inesperada no meio da manhã. Alguém
chamou o Comandante da tropa e as botinas foram se afastando até
desaparecer dos ouvidos. A transferência de presídio pegou todos
nós de surpresa.
-
O plano de fuga estava todo traçado. Nada podia dar errado. Será
que justo agora seremos transferidos?... Houve vazamento de
informação – garantiu Filósofo.
-
Se eu descubro o leproso... ele tá morto! – resmungou outro.
-
Calma gente!... Se for transferência... pode não ser para todos.
Talvez não saibam e nem descubram o túnel. Se assim for... sorte de
quem ficar... prossegue com o plano de fuga – apaziguou Bode
Rouco.
-
Mas a preocupação e a desconfiança instalaram-se na fisionomia de
cada um. Agora todos eram considerados traidores.
-
Pode ter sido o Padre – disparou um ateu.
-
Não, o Padre só é puxa-saco de Deus - gozou Pé Podre... Pé
Podre curou a frieira purulenta, mas o apelido permaneceu.
-
Ele que está certo, se é para bajular é melhor que seja logo o
Chefe Supremo e não um intermediário! - afirmou Beato.
-
Esse só vivia rezando – salientou Godofredo Zebu.
-
Cala a boca, Dono da Verdade! - gritou um descabelado, com cara
de sono, reclamando do Beato.
-
O Dono da Verdade morreu na cruz e um dia retornará para nos
julgar... que ninguém ouse desafiá-Lo - respondeu Beato sem no
entanto se alterar.
-
Eu li um livro... que começava assim: “esta história eu
escrevi após à minha morte.” Como é possível um morto
escrever? Jamais alguém voltou! – brincou Pé Podre.
-
Porque o outro mundo é muito melhor que este, por isso não é
permitido e ninguém se atreve a voltar - completou Beato
dando-se por satisfeito.
-
O que vocês dizem não cheira nem fede. O diabo vai se divertir
muito se eles descobrirem o nosso túnel - resmungou Pé Podre.
-
Bode Rouco tem razão. Sorte de quem ficar aqui – encerrou o
assunto Beato.
-
O silêncio acomodou-se ali, nem meu amigo Filósofo esboçou
comentário, pois vinha entrando no pátio mais outro grupo de
presidiários. Os guardas, fortemente armados, ordenaram que todos se
sentassem. As autoridades graduadas fizeram uma vistoria visual na
turma.
-
3782... saia de forma. Vá para a sua cela, se vista e pegue as suas
coisas – gritou o Comandante.
-
3782 era um senhor de idade, sisudo, sossegado – explicou Godofredo
Zebu. – Acreditei ter completado seu tempo de prisão. Ganharia a
liberdade, mas o Comandante continuou chamando:
-
4674, 2892, 3667... façam o mesmo.
-
Cheguei à conclusão que esses estavam encrencados por outro motivo.
Isso alentou Filósofo. E para minha surpresa, o Comandante, depois
de uma breve pausa e um cochicho, quase imperceptível com outra
autoridade, enunciou:
-
6555.
-
Era o meu número. André... tremi, Bode Rouco tossiu sem vontade,
Filósofo suspirou e Touro Amuado olhou temeroso direto para mim. Com
um sacolejo de pescoço o Comandante mandou que eu me retirasse com
os outros. Fui para a cela, peguei meus trecos e, ao sair, três
guardas já me esperam. Fui encaminhado para uma sala afastada. Mal
me acomodo numa cadeira e entram os três com olhares apreensivos e
indagativos. Um oficial, numa vestimenta impecável e brilhante,
notando a ânsia deles, decretou:
-
Não quero ouvir um "a” minúsculo aqui dentro. O engraçadinho
sai direto para a solitária.
-
Recebemos uniformes com cheiro de pano novo, algemas e correntes para
os pés. Fomos colocados num ônibus e esperamos calados, durante a
manhã todinha. No almoço serviram umas marmitas reforçadas, grande
mesmo. Ao escurecer, para o espanto de todos, rumamos para o
aeroporto. Muitos resmungaram. Alguns tinham medo de uma execução,
outros de altura. Ninguém teve notícias do túnel, isso dava agonia
no espírito curioso de Filósofo, que se acocorou pensativo na
poltrona. Depois de algum tempo levantou-se e começou a andar pra lá
e pra cá. Sua atitude despertou a atenção do guarda que fez um
sinal para ele aquietar-se.
Godofredo
Zebu tomou mais uns goles de cerveja.
-
André, Filósofo não se conteve, angustiado, perguntou para onde
estavam nos levando. O besta recebeu uma cacetada no lombo que ficou
respirando igual ao Bode Rouco. Ninguém ousou perguntar mais nada
sobre o nosso destino. Alguns presumiram que nos mandariam para a
selva amazônica, num serviço de construção de estrada, como já
aconteceu algumas vezes. Os governantes recorrem aos presos para
trabalhos sociais em lugares onde ninguém quer ficar, porque o risco
de se pegar doenças é muito grande, assim, além de diminuírem a
densidade carcerária, sem levantar suspeita, constroem estradas,
pontes, cidades, escolas... Eu já tinha lido isso e também sobre
malária, febre amarela, dengue e muitas outras moléstias que se
contrai, da noite para o dia, nessas florestas tropicais. Quando
ouvimos o ruído da turbina do avião... a apreensão foi geral.
Caminhamos para o embarque como rês que vai para o abate. O barulho
das correntes nos pés soava num ritmo angustiante de escravidão.
Doíam os ouvidos. Era um escárnio. Não ser dono de sua vontade é
muito triste. Filósofo, a essa altura, só conversava com os olhos.
Aprendera a lei do silêncio da pior maneira. O avião levantou voo
quando já escurecia. Houve tanta desorganização que até as
autoridades não se entendiam, discutiam na frente de todos. O avião
ganhou altura, parecia que nem fazia barulho. Engoli a saliva e o
ronco dos motores se fez forte em meus ouvidos. Pelos semblantes, a
maioria não demonstrava estar preocupada para onde iríamos...
Também, para quem está ocioso e condenado à prisão, num tempo
muito superior à sua expectativa de vida, o que vier de diferente,
para ele é lucro. Relaxados em seus assentos, cochilavam. Alguns, de
boca aberta, até roncavam.
Godofredo
Zebu encheu os copos novamente e continuou:
-
Eu ali, olhando meus colegas, tive pena e um desejo de que aquela
despreocupação não fosse irreal. Lembrei das mulheres da minha
vida. Contei da primeira à última; recordando o sorriso, o olhar e
os trejeitos de cada uma. Com duas ou três sonhei até em me casar,
construir família. Mas o que fazer se de nenhuma delas consegui me
despedir direito! A polícia chegava sempre como se eu fosse o
culpado. Uma fase longa de minha vida... passei só vendo barras de
ferro, cassetetes e ordens para serem obedecidas sem direito a
reclamar.
Por
um momento Godofredo Zebu desviou-se da história e desafogou
consigo:
-
Droga, por que tive que trilhar por esse caminho sujo! - Godofredo
Zebu sorriu triste. – André, meu avô sempre dizia: ainda bem
que “felicidade” não se compra em supermercado, caso contrário,
além de pobre, eu seria também infeliz. - Coçou o couro
cabeludo e voltou ao avião:
-
André, agora vem a melhor parte da viagem. O avião trepidou como um
carro numa estrada esburacada e todos acordaram espantados num susto.
-
Caralho!!! Que é isso? – indagou Jegue Manso... Conhece Jegue
Manso?
-
Não, não conheço – disse André Gustavo.
-
Melhor não conhecer mesmo, o cara pelado assusta qualquer um!... Mas
o avião desceu como se fosse cair. As máscaras de oxigênio
despencaram nos assentos. Houve gritos, chiliques, ataque de nervos.
O pânico foi geral. Três estavam sem os cintos de segurança e
foram arremessados para o ar contra o teto da aeronave.
-
Segurem-se em algo – gritou Filósofo.
-
Estamos fodidos... saímos da cadeia para morrer de acidente
aéreo!!!... Ninguém merece...! – apavorou-se Bode Rouco.
-
Confesso que eu também não estava calmo. Meu coração disparou.
Havia algo errado e muito grave acontecendo. O avião não
estabilizava. Os companheiros olhavam-se como se estivessem se
despedindo e pedindo perdão por todos os seus erros. Os solavancos
aumentaram. Os três despencaram do teto e bateram nas poltronas
vizinhas. Foram seguros pelos que estavam sentados.
-
Voltem para seus lugares e coloquem os cintos – berrou
Filósofo, que sempre organizava as coisas na cadeia. Acho que ele se
sente responsável por tudo que acontece ao seu redor.
-
Eles se agarraram nos bancos e arrastaram-se para seus lugares. Um
deles, o Cata Cocô, sangrava na testa. Outro soprava o cotovelo
despelado. O terceiro, inexplicavelmente, só ajeitava o cabelo. Eu
pensei em olhar para fora, mas não adiantava, o vidro da janela era
um espelho que refletia o pavor de todos. De repente um clarão fez
da noite dia. Cegou-nos. O avião subiu como se acompanhasse a luz.
As nuvens transformaram-se em água. A chuva torrencial desabou sobre
o avião que continuava a subir quase em linha reta. Um vácuo
repentino. André, nós descemos uns quinhentos metros. Agora ninguém
mais gritava nem falava, acho que todos rezavam intimamente. O fim
não tardaria. Batemos numa camada de ar e estancamos novamente. A
escuridão retornou lá fora. Engoli a saliva e percebi o ronco forte
dos motores. O avião ainda trepidava, porém com mais suavidade e
constância. Os semblantes apavorados perguntavam se o pior já havia
passado. Aos poucos, alguns suspiros ouviam-se. Um burburinho rápido
no lado direito e Bode Rouco se manifestou:
-
Alguém tá borrado aí...?!
-
Risos amarelos de alguns e assuar de narizes de outros. Houve até
quem enxugasse as lágrimas sem ter vergonha de demonstrar que tinha
chorado de verdade, numa despedida repentina desse mundo ou numa
prece fervorosa a Deus. Filósofo, todo posudo, completou:
-
Que cagaço, meu!!... Olha que eu já viajei muito de avião, mas o
que aconteceu aqui... foi inusitado. Estou com medo do que pode ter
acontecido lá embaixo. Uma catástrofe sem precedentes... desde a
criação da humanidade.
-
Meu Deus!... Isso parece um sonho! – exclamou Beato.
-
Quando a realidade nos parecer um sonho é porque está na hora de
irmos embora deste mundo – declamou Filósofo.
-
Não exagera o... malucão! – rebateu Pé Podre.
-
Tomara esteja eu errado, mas suspeito que a superfície da terra
explodiu... ou grande parte foi carregada pelo meteoro que passou por
nós. A luz que vimos é desconhecida... sua luminosidade e textura
indicam uma combinação de gases... inflamáveis e explosivos... que
podem ter vindo de muito além do nosso universo...
-
Meu Deus...!! – suplicou Beato demonstrando confiança no que
ouvia. – Então o tempo se completou!... Vamos todos encarar o
Criador.
-
Filósofo nem ligou para o apavoramento de Beato e prosseguiu seu
pensamento.
-
Assim... todos que estavam na superfície da terra... foram
exterminados. Para quem reclamava da sociedade injusta que o homem
construiu, terá agora uma chance de corrigir os erros. Possuímos
toda a tecnologia do mundo, mas de nada vale a tecnologia se não
tivermos campo para a sua aplicação. Pois o que nós precisamos
agora é do trivial: arroz, feijão, carne e salada... já estou até
com fome – concluiu Filósofo muito sério.
-
Eu me abstinha de emitir opinião, preferia só escutar as
caduquices.
-
Não, não quero acreditar nisso... Isso é ficção. Ele deve ter
lido naqueles livros grossos – duvidou Pé Podre e completou -
ou está variando. Deve ser efeito do susto ou pela injustiça que
acha que sofre. Ele pensa até que é Santo!
-
Filósofo ganhara, de fato, fama de sabichão... muito inteligente
ele – garantiu Godofredo Zebu. - Dentro do presídio deu aulas para
os detentos e sempre falou de coisas que pareciam ser do outro mundo.
Assombrava a ignorância dos prisioneiros, carcereiros, guardas e até
dos diretores do presídio. Assim, as suas palavras passaram a ser
viáveis nos cérebros confusos dos detentos.
-
Pela intensidade da luz e considerando a nossa altura –
ameaçava ele convicto -, lá embaixo estourou uma granada na
cabeça de cada ser vivente... de dentro pra fora – explicava
fazendo gestos dos miolos saltando.
-
O quê...?! Para de inventar estórias! – desafiou Cata Cocô
com um enorme galo na cabeça ao lado do corte que ainda sangrava.
-
Isso mesmo – confirmou Filósofo -, só não sei a extensão
da área que o desastre alcançou... tomara tenha sido longe da
região do aeroporto, senão... – Filósofo calou-se e olhou
para todos.
-
Senão o quê? – insistiu Pé Podre.
-
Não teremos onde pousar!... Pode ter acorrido no Globo Terrestre
inteiro. A luz se alastrou num círculo em direção ao horizonte...
o que significa que a onda de vácuo foi mais rápida que o avião,
por isso o piloto conseguiu estabilizar a aeronave. E estamos
vivos... por um grande milagre.
-
Oh, Meu Deus!... Olhai por nós... – implorava Beato.
-
Não clame por Deus agora... creio que nessa hora Ele está muito
ocupado com a chegada de milhões de almas – comentou Filósofo.
-
Ninguém quis mais questionar, nem emitir opinião. A espera foi
longa. Qualquer pequeno movimento, fora do normal, voltava a agonia
de um novo incidente. Depois de algumas voltas ao redor do aeroporto,
a voz do Comandante entrou de supetão:
-
Senhores passageiros, daremos início aos procedimentos de
aterrissagem. A nossa viagem foi atípica... – emitiu, em
termos técnicos, os detalhes das intempéries que ocorreram durante
o voo, pediu desculpas, agradeceu a preferência e finalizou... -
Solicito a todos que coloquem os cintos. Obrigado.
-
Mais essa, Comandante trouxa, acha que alguém está sem cinto! –
goza alguém do fundo.
-
De fato, ninguém ousou tirá-lo depois da balbúrdia. O avião
aproximou-se do solo. O primeiro ruído dos pneus no chão trouxe
certa apreensão. O segundo, a certeza de que pousaríamos sem
problemas e o barulho do rodar constante em terra firme, um alívio
derradeiro. O avião freou. O aeroporto estava calmo, em silêncio.
Algumas aeronaves estacionadas. O nosso avião parou ao largo da
pista. A voz do Comandante entrou hesitante e atemorizada:
-
Se..senhores pa..passageiros... por favor aguardem em seus lugares.
Voltaremos a informá-los...
-
Outra voz, ao fundo, chegou e se intrometeu autoritária:
-
Deixe essa parte comigo, Comandante. Aqui é o Chefe da Polícia
Carcerária. Minha ordem é levá-los para a penitenciária de
Vitória. Portanto, até segunda ordem, permaneçam em seus lugares.
-
Filósofo passou a mão pelo rosto.
-
Se aconteceu o que eu estou imaginando, não haverá ninguém para
nos receber. Dizem que o mundo vai acabar sete vezes antes do Juízo
Final, creio que esta foi a sexta.
-
Beato se manifestou bravo:
-
Saiba você que eu já estudei para padre...
-
E o que tem isso a ver? – revidou Filósofo.
-
Li muito as Santas Escrituras... não tem nada disso registrado.
-
Filósofo garantiu que a quinta vez que Deus destruiu a Terra foi
quando uma chuva de meteoros aniquilou os dinossauros...
-
Depois Ele demorou demais para criar o homem... – completou
Filósofo como se censurasse a atitude de Deus.
-
E Adão e Eva, como você justifica? – perguntou Beato.
-
Ah, não vamos meter o bedelho nesse mérito religioso -
intrometeu-se Jegue Manso -, só sei que precisamos sobreviver a
essa catástrofe. As outras... são águas passadas.
-
Deixa de ser uma besta morta, Jegue Manso! Não vê que estão
gozando com a cara da gente?! – ridicularizou Cata Cocô.
-
André, Jegue Manso virou uma mula... se aborreceu de verdade. Só
não saíram na porrada porque estavam algemados. Filósofo
interrompeu a discussão dos dois e com cara safada aconselhou:
-
Olhem para fora e descrevam o que vocês veem.
-
Jegue Manso e Cata Cocô esqueceram a desavença e esticaram os
pescoços. Observaram estáticos e, estupefatos, voltaram-se para as
suas posições.
-
Deus meu! Que é isso? – perguntou Jegue Manso, atônito, de
olhos arregalados.
-
Aí todos se assustaram de verdade. Filósofo foi o primeiro a enfiar
a cara no vidro e declarar.
-
Cacete, eu fiquei querendo tirar sarro com a cara de vocês e o que
tem lá fora... é pior do que eu narrei!
-
Todos se atocharam nos vidros... Até eu. André, juro que nunca vi
tanta polícia junta. Nem em desfile de sete de setembro com a
presença do Presidente da República!... Era um mundaréu. Milico
pra todo que é lado. Uma sequência de caminhões dispostos lado a
lado. Até um tanque de guerra apareceu na pista! No teto do
aeroporto havia uma fileira enorme de capacetes camuflados em posição
de tiro. Todos mirando contra o avião. O Comandante da aeronave,
acompanhado do Chefe da Polícia Carcerária, caminharam cautelosos
pelo pátio do aeroporto. Foram seguidos por uns vinte milicos,
fortemente armados, andando de frente, de costas e apontando para
todos os lados. Depois soubemos que um telefonema anônimo, avisara
ao comando geral que haveria uma tentativa de resgatar alguns
prisioneiros, ainda dentro do aeroporto.
Godofredo
Zebu entorna mais uns goles de cerveja.
-
Após um longo tempo, o Chefe da Polícia Carcerária retorna.
Conversa com policiais e pelo gesto de um deles, apontando para o
céu, eu vi um helicóptero que se aproximava. Eles se afastaram e o
helicóptero pousou. Saltaram duas pessoas que, pelos uniformes
enfeitados, concluí serem graduados, superiores do Chefe da Polícia.
Durante uns cinco minutos ficaram ali num bate-papo de rodinha. O
Chefe da Polícia Carcerária dirigiu-se para uma viatura e após
algum acordo retornou para a aeronave. Assim que acionou o microfone
um ruído estridente antecipou-se à sua voz. A microfonia não foi
controlada. Ele apareceu na frente de todos e de viva voz deu as
ordens:
-
Dois policiais entrarão no avião e por ordem de numeração dos
assentos, vocês virão, um a um, para esta porta.
-
André, saímos dali feito joia rara. Cada prisioneiro protegido por
cinco milicos atentos. Sem contar a escolta extra do comboio pela
estrada... três helicópteros sobrevoavam os arredores. Só depois
de sermos trancafiados na Penitenciária foi que o esquema de
segurança se dissolveu. Bem, para mim foi melhor. Fugi quando aqui
fora se tornou seguro... e saí como gente... pela porta da frente.
Custou caro, saí na base da troca. Maninho “gêmeo” tá lá
dentro até hoje. Ele queria proteger a família financeiramente!...
Fazer o quê?... De mais a mais, ele levava uma vida de burro de
carga aqui fora. O danado ralava de sol a sol e não fazia nem pro
feijão!... Lá está bem melhor!...
André
Gustavo ficou a ouvir fatos, que para um ser humano normal, seriam
relatos para tremendos pesadelos. As mortes, narradas como estórias
da carochinha, traziam risos aos assistentes. As crianças cresciam
assimilando essa realidade inóspita. O mundo de fantasia e fábulas,
o que é normal para uma juventude sadia, não pertencia a elas.
-
Bandido não anda uniformizado, polícia sim... quer dizer, o
bandido, sabendo que tem polícia por perto, se faz de bonzinho... a
polícia não desconfia de nada...!
VIII
- O ESTOPIM ACESO
No
dia seguinte, ao entardecer, ouviram foguetes que estouravam
aleatoriamente pelo Morro do Junqueira. Logo chegou um molequinho
assustado, bufando, suado e resfolegando:
-
A polícia... armou um cerco... tá no pé do morro... do Valão até
o bar do Nenê... ninguém passa.
-
Manda Tonhão e Mosquito ficarem de olhos abertos no mirante e você
vem me informar o andamento da movimentação, entendeu?
-
Sim, sinhô.
-
Pode ser coincidência, mas recebemos uma quantidade boa de droga há
três dias. Acredito que tem espião se passando por viciado –
confabulou Godofredo Zebu, que chamou sua turma para uma reunião de
emergência.
A
polícia cercara o Morro do Junqueira e subia fazendo uma varredura
denominada: “operação faxina” - com mandato de busca e
apreensão em cada barraco existente naquela favela.
Só
havia uma saída para Godofredo Zebu... pelo céu. A ajuda precisaria
vir do alto. Pois no chão os policiais se multiplicavam. O cerco
fecharia no cume do morro com centenas de armas apontadas para a sua
fortaleza. Se tivesse pensado antes, que tal situação pudesse
ocorrer, teria feito um túnel de dentro de seu quarto com saída
após o Valão. Mas agora era tarde, somente um helicóptero o
salvaria dessa emboscada. Foi esse o recurso encontrado entre as
conversas desperdiçadas.
-
Liga para a Empresa de táxi-aéreo – sugeriu Gorgulho.
-
E como vou falar o... inteligente?... – zombou Godofredo Zebu. -
Olha, vêm me pegar aqui no topo do Morro do Junqueira, pois a
polícia está prestes a botar a mão em mim... sejam bonzinhos e me
obedeçam...!
Gorgulho
baixou os olhos pela repreensão.
-
A sugestão dele não foi das piores – disse André Gustavo que,
para demonstrar gratidão a Godofredo Zebu, levantou-se, entregou sua
arma e pediu algum dinheiro.
-
Para que a grana? – perguntou Godofredo Zebu.
-
Preciso sair daqui desarmado, compro outra na Farmácia do Lupércio,
vou até a Empresa de táxi-aéreo, alugo um helicóptero e no
caminho obrigo o piloto a pousar aqui e resgatá-lo.
-
Até que você não é tão burro... Eta inteligência
desperdiçada!... Não dou a minha mão à tala, mas não creio que
você consiga sair do morro.
-
Não tenho ficha na polícia. Só preciso me precaver dos capangas de
Benício.
-
Já vi que você não conhece a polícia quando inicia uma batida.
Ninguém entra nem sai. Só depois de concluída a vistoria...
André
Gustavo não deu atenção ao que Godofredo Zebu falava. Ele mesmo
não queria ser localizado pela polícia, dentro do quartel-general
do estopim da operação.
-
Você tem alguma pessoa de confiança e de ficha limpa... que mora
mais abaixo? Eu preciso estar dentro de uma residência que não gere
suspeita quando a polícia revistar. Eu invento uma história. Não
tenho antecedentes. Não podem me deter. Quando eu for liberado,
desço para executar o plano. Só preciso de tempo suficiente para...
-
Vou fazer melhor para você – cortou Godofredo Zebu. - Eu não
tenho nada a perder mesmo!... – e gritou: - Cata-vento!
Antes
de dois segundos um molecote chegou-se à janela.
-
Sim, Sinhô Godofredo.
-
Os homens já chegaram na casa de Dona Esmeralda?
-
Não, Sinhô Godofredo... estão ainda no Dercindo.
-
Leva o cidadão aqui para a casa dela.
-
Sim, Sinhô Godofredo.
Godofredo
Zebu tranquilizou André Gustavo.
-
Ela me deve muitas buchas e várias pedras. A polícia não vai
chegar aqui antes das três da madrugada.
-
Antes disso eu estarei de volta. Prepare-se quando ouvir um
helicóptero.
André
Gustavo recebeu dinheiro, celular com o número de Godofredo Zebu e
um forte abraço, seguido de uma frase verdadeira:
-
Caso consiga me livrar dessa... você ganha um irmão para toda a sua
vida. Está esquecendo a sua mochila – avisa Godofredo Zebu.
-
Não vou precisar mais dela... pode dar um sumiço.
André
Gustavo entrou no casebre de Dona Esmeralda acompanhado por
Cata-vento. Não esperava encontrar uma senhora de idade tão
avançada. Ela movimentava-se com dificuldade. Embora parecesse
sóbria, fedia a álcool. Seu sorriso bondoso para o molecote foi de
bisavó carinhosa:
-
Cata-vento, meu filho, o que faz aqui a essa hora da noite, querido?
-
Sinhô Godofredo mandou a senhora obedecer ao cidadão aqui. É coisa
séria.
-
Godô mandou? Eu obedeço e cumpro, querido! – disse ela num
sorriso murcho. – O que deseja, cidadão?
André
Gustavo se apresentou, mas temeu pela capacidade de entendimento
daquela senhora. Explicou e repetiu. Até que ela concordou.
-
Eu entendi. Muitos já se hospedaram na minha casa, cidadão.
-
Não me chame de cidadão. Eu sou André Gustavo, seu sobrinho-neto
que está apenas de visita.
-
Ah!... Tá bom...! A polícia nunca me perturbou, querido... sou
apenas uma velha.
-
A senhora não tem nada... dentro de casa... droga, armas...
-
Não, não... só me dão na medida de meu consumo... que é bem
moderado... não posso mais... os pulmões reclamam...
André
Gustavo ainda não se aprovara. Seu ato fora precipitado, totalmente
fora de seu estilo. Ele poderia até descer o morro sem problemas,
mas os capangas de Benício estariam vasculhando a cidade.
-
“Meus crimes foram todos perfeitos. Os idiotas dizem que não
existe crime perfeito. Claro, só conhecem os que foram
desvendados!... Os perfeitos permanecem ocultos.”
De
fato, André Gustavo perdera a conta de quantos praticara.
Misturavam-se épocas, tipos de disfarce, planos e tantas noites
suando camisa num quadrado de uma casa, ainda em construção,
cavando sepulturas! Entre assaltos, roubos mixurucas, crimes e golpes
que muitos confundiam com mágica - André Gustavo nunca esqueceu seu
primeiro assassinato – nada saiu correto – também não havia
feito nem um rascunho do plano. Esse era agora, o seu maior medo...
de tudo se repetir.
André
Gustavo tornou-se um rapazinho inconformado. Sua revolta recaía
sobre aquele aglomerado de prédios e lojas comerciais que se
estendiam por longas avenidas. Conjecturava que ali praticavam um
boicote contra ele. Cansou de procurar emprego em várias lojas,
farmácias, oficinas, supermercados, depósitos, construções e, em
todos os lugares, ouvia a mesma frase: “não há vaga”. Após um
longo período de tentativas frustradas, a decepção aniquilou a
esperança. A casca grossa, na qual a sociedade supõe que se
protege, não deixa ver quem bate à sua porta. Bastaria boa vontade
de poucos para que os problemas de todos fossem resolvidos. Ele
queria apenas ser um rapaz livre. Mas como alcançar a liberdade se
ela custava dinheiro?... Vez por outra, ouvia fatos acorridos com os
amigos do alheio, que desencaminharam na vida, serem sussurrados
pelos becos e ruelas: "Cara de Cavalo assaltou ontem à
noite... se deu bem!... O malandro subtraiu grana, relógio e um
cordão de ouro que vale uma fortuna."
André
Gustavo se perguntava:
-
"Como vou assaltar alguém se nem arma tenho?"
No
desespero do fracasso, sem enxergar um palmo de futuro, pegou a faca
de limpar peixe e saiu disposto a conseguir dinheiro para comprar um
revólver. Com um revólver ele conseguiria assaltar quem quisesse.
Agiu idêntico aos personagens dos filmes que assistira. Arranjou um
pano escuro para esconder o rosto, colocou no bolso e aguardou
alguém, com sinais de boa vítima, aparecer. Tocaia sem sucesso.
Todos que passavam, ele conhecia. Moravam nas ruas próximas à sua
casa; alguns eram pais de amigos do time de futebol. Outros eram
amigos íntimos que chegavam a cumprimentá-lo:
-
Boa-noite, André. Tudo bem?
André
Gustavo respondia desanimado.
Ali
só morava gente pobre. O que ele iria conseguir? Talvez poucos
trocados que fariam falta para o infeliz alimentar sua família.
Assim,
no dia seguinte, bateu o arrependimento. Ficou duas semanas sem
pensar em besteira. Deveria procurar outro jeito de vencer na vida.
Nessa
hora o desespero se avizinha, a esperança se esconde e a
oportunidade malévola, se apresenta. É o início da aflição. E
uma mente errada sempre atrai ideia maligna.
-
"Longe de casa as pessoas são desconhecidas" – cogitou
com brilho nos olhos.
Poderia
assaltar sem ser reconhecido. O local carecia ser analisado. O ponto
do ataque e o meio de fuga, planejados. Não poderia surgir empecilho
de última hora. Ele era inexperiente, precisava se cuidar.
Já
era noite quando ele, temeroso, pegou a faca de limpar peixe, um boné
e o pano preto. Seus pais estavam distraídos na sala e os irmãos já
haviam saído. Seus irmãos, antes de sumirem no mundo, andavam à
toa quase todas as noites. André Gustavo, nem “até logo” deu.
Saiu escondido. Andou bastante, atravessou dois bairros. No terceiro,
parou numa praça.
-
"Muito movimentada para eu tentar alguma coisa" - retrucou
após pequena análise.
Rodou
por dois quarteirões e lhe pareceu ser ali o ambiente adequado.
Passagem de poucos. Pessoas bem arrumadas. Deveriam portar dinheiro
grosso nos bolsos. Da esquina ele avistava as quatro ruas da
encruzilhada. Esperaria alguém passar e só agiria quando nos quatro
ângulos de visão, não viesse ninguém. Após o assalto realizado,
sairia correndo em direção à praça, ou trançaria pelos
quarteirões e voltaria de ônibus, pois já estaria com dinheiro
para a passagem. A rota de fuga só dependeria de onde a vítima
aparecesse.
Estava
quase a desistir do intento, quando um senhor de meia-idade surgiu no
sentido norte. André Gustavo olhou para os três ângulos restantes
e os viu totalmente desertos.
-
“É agora ou nunca” – encorajou-se tremendo por dentro.
O
coração disparou em batidas apressadas. Um suor, injustificado,
subiu no corpo. Cobriu o rosto com o pano. Já ouvia os passos do
homem. Olhou novamente os três ângulos para constatá-los vazios. A
oportunidade era essa, não haveria outra melhor. Voltou alguns
passos para a esquina e o surpreendeu com a faca na mão:
-
Fique quieto... é um assalto... passe o dinheiro.
O
homem parecia não acreditar. Olhou direto nos olhos de André
Gustavo. E ele sabia que não podia olhá-lo de frente. Teve vergonha
e ordenou bravo:
-
Vire-se.
O
homem, lentamente se virou e ele, hesitante, colocou a mão no bolso
traseiro puxando a carteira. Estava gorda. Havia muito dinheiro ali
dentro.
Num
gesto repentino, o homem tentou agarrar o pulso do inexperiente André
Gustavo, que, instintivamente, retraiu a mão para evitar que ele
conseguisse segurá-la. Nervoso, o homem agarrou em seu pescoço,
sufocando-o. André Gustavo não poderia ter outra reação, a não
ser a de enfiar a faca na barriga do homem. Pensou duas vezes antes
de fazê-lo, mas o ar já lhe faltava nos pulmões... e o fez.
Paralisado,
olhou nos olhos do homem que, assustado com o acontecido, abriu a
boca e tombou de lado.
André
Gustavo, ao ver a sua mão suja de sangue, tremeu mais ainda. O
sangue respingou em sua roupa.
-
"O que eu fiz!?" – recriminou-se. - "Não foi
isso... o planejado!"
Correu
esquecendo a rota de fuga, queria apenas ficar longe dali. Entrou num
banheiro público e lavou-se. Torceu a camisa onde o sangue manchara;
como não saía, cortou alguns pedaços, fazendo buracos no tecido
com a faca. Retirou o dinheiro da carteira e jogou o resto no vaso
dando a descarga. Voltou para casa a pé, tremendo e maldizendo o
fato. Adormeceu com aquela cena degradante que o acompanha até hoje.
No
dia seguinte, por curiosidade, parou defronte à banca de jornal e
leu a notícia inteira. O homem morreu lá mesmo, não passara
ninguém para socorrê-lo. Conclusão: ninguém o vira ali. Mesmo
assim a pulga ficou atrás da orelha a beliscar-lhe durante anos. Até
em casa, quando o assunto chegou, trazido por uma vizinha, ele
esforçou-se para não se entregar. Saiu para a rua conjecturando que
não poderia comprar nada que despertasse a atenção com o dinheiro
roubado, que permanecia escondido, amarrado no galho mais alto do pé
de jamelão. Como não era época da fruta, ninguém treparia até
lá.
Assim,
perambulou pelas noitadas para gastar, aos poucos, o famigerado
metal. Foi numa dessas noites que conheceu o outro lado da
indecência. Entre as drogas e os crimes, vive outra sociedade
paralela. Organizam associações distintas e cada qual busca seu
ideal. Um jeito desqualificado de encarar o panorama social, desde os
primeiros passos até o puxar de um gatilho. Esse é, de fato, outro
mundo. Iniciam cedo nos delitos, nas orgias. Ali, formam-se criaturas
com valores e comportamentos esdrúxulos, porém, considerados
corretos em sua ambiência.
Um
adolescente cabeludo se aproximou de André Gustavo e ofereceu um
revólver por uma pequena quantia.
-
Estou sem nenhuma grana e com vontade de umas tragadas – disse com
cara de comparsa leal e que André Gustavo lhe faria um grande favor
se adquirisse a arma.
-
“Onde eu esconderei esse revólver? Também no pé de jamelão?”
André
Gustavo ficou com receio de recusar e ser mal interpretado pelos que
o rodeavam. Sem saída imediata, enfiou a mão no bolso e deu-lhe a
quantia solicitada, acompanhada de um sorriso e sinal de cabeça que
concordava com a transação. O rapazinho cabeludo saiu feliz da
vida.
André
Gustavo, ao pegar na arma, não sabia o que fazer com ela. Sem noção,
permaneceu observado pelos que assistiram à transação comercial.
Pensou em guardá-la, mas, num gesto impulsivo, ofereceu se alguém
queria emprestada para algum serviço. Não faltaram braços
esticados. Uns seis ao mesmo tempo. O que fazer? Quem atender? Num
relance especulativo, perguntou:
-
Quanto ganho?
Ouviu
"vinte"... "trinta"... "quarenta"... Os
lances do leilão repentino foram aumentando. Até parar nos
“sessenta”. Ninguém mais arriscou. Quem ofereceu sessenta,
sorriu vitorioso, com os olhos acesos e vibrantes, esticou mais a
mão.
Ali
mesmo, em sua frente, ocorreu nova negociação, aparentemente entre
amigos.
-
Preciso de um serviço – achegou-se um mulato perto daquele que
arrematara a arma.
-
Quanto levo? – perguntou o vencedor do leilão, demonstrando
interesse.
-
Cinco mil... – respondeu o mulato.
-
Pouco. Quero vinte.
-
Muito. Não tenho tanto.
-
Preciso de vinte - reafirmou. - É minha dívida.
-
Eu não disponho da quantia, já disse – o mulato retrucou. - Dou
dez agora... prorrogue o restante.
-
Não tenho tempo. Quando o cobrador chegar, se eu não tiver a grana
toda... babau. Morto, o que vou fazer com dez?
–
Quem é o seu credor? – perguntou o mulato disposto a negociar.
O
arrematante encostou a boca no ouvido do mulato e sussurrou um
segredo de borboleta.
-
Queime os dois e embolsará... trinta... eu garanto – afirmou o
mulato.
-
Você também quer ver o... fulaninho... apagado?!
-
Por que o espanto?...
André
Gustavo presenciava a negociata de uma vida, como se fosse uma velha
bicicleta cobiçada. Outros três, na mesa ao lado, dominados pela
cachaça, comentavam abobrinhas.
-
Só terminamos nossa formação no dia que morremos.
-
Então a morte é o diploma de “conclusão” da vida? - pergunta
outro se rindo de olhos virados.
-
Mais ou menos isso... Um amigão meu dizia: “a autoestima é a
vitamina do corpo e a paranoia, o veneno a alma.”
O
terceiro, com a língua enrolada, contava baixinho:
-
Um amigo meu jogou a vida aos cães. Desertou da batalha de Deus. Não
sei como alguém consegue ver coragem numa covardia dessas!...
Engoliu o veneno bem na minha frente... Ainda teve a coragem de me
pedir...
-
Tome conta de tudo - disse no sufoco o despreparado.
-
Eu respondi esculachando: você não está deixando nada de bom, seu
verme!...
-
Verme!?... Nossa!... Que ofensa indelicada!...
-
Como poderia ser complacente com um neurótico que afoga a vida num
copo de veneno?... A mãe dele sofreu...! Todo dia ia rezar no túmulo
do desafortunado. Depois a coitada caducou, saiu de casa e esqueceu o
caminho de volta. Vagava pelas ruas à procura do filho. Veja só!...
Até que um caminhão esmagou seus fracos miolos no asfalto.
Dois
outros bebuns azucrinavam uma dançarina:
-
Eu não sou acostumado a resolver os meus problemas na diplomacia e
sim, na bordoada. E você, boneca, não banque a difícil... Uma
traição gananciosa pode resultar em dois pulsos... cortados.
O
outro pegou no queixo da dançarina e desfilou seu charme etílico:
-
Belezoca... a sua felicidade está batendo a sua porta... toc...
toc... toc... – e se ria de babar.
Assim,
André Gustavo passou a ser um locador de arma de fogo. Em pouco
tempo possuía mais de vinte e fumava um maço de cigarros por dia. O
vício nasceu forçosamente, por respirar fumaça alheia entre um
negócio e outro. As noites se mostravam favoráveis às
transgressões das regras sociais. Mas nessa "sociedade" os
negócios não são respeitados e registrados em cartório, com
livro-caixa, como se fosse um comércio normal. A clandestinidade é
uma faca que penetra, lentamente, pelas costas e quem não percebe a
hora certa de escapar, pode ficar enterrado ali mesmo.
A
aproximação dos Maloqueiros – uma facção criminosa - em número
visível de doze -, mostrou para André Gustavo esse momento. Os
Maloqueiros encamparam o comércio dele, que, para não peitar o
esquema, viu o fim de sua atividade lucrativa. Entretanto, quem
inicia na contravenção faz amigos leais. Revoltosos não faltaram a
se oferecer para liquidar os Maloqueiros. André Gustavo aprendera
cedo que uma irmandade escora a outra e formam uma corrente de
sucessores. Não eram apenas os Maloqueiros que o preocupava, e sim,
todos os enlouquecidos que viriam após eles. Isso acontece
rotineiramente nas classes desfavorecidas.
Assim,
retirou-se em definitivo, somente com o revólver que havia comprado
para se defender, caso fosse necessário. A partir desse momento
buscaria outra forma, menos desonesta, de ganhar a vida. Completava
seus dezenove anos e a frase que o perseguia desde criança... quando
eu crescer e for rico... não fazia mais sentido.
O
pai, numa tarde de domingo, depois de anos de silêncio, perguntou
sem muito interesse:
-
E a vida, filho... os estudos... o emprego... os amigos...?
André
Gustavo jamais confessaria ao pai sua verdadeira profissão.
-
Estou trabalhando de guarda-noturno, pai. Vou ver se arranjo um
trabalho de dia... para estudar à noite.
-
Boa, filho!... Isso mesmo, assim é que se cresce na vida.
André
Gustavo teve um lampejo de confessar ao pai sua real condição. O
sorriso confiante do velho o fez voltar atrás, mas no fundo de sua
alma, ele sabia que se sentiria melhor se tivesse dito a pura
verdade.
-
Sabe, filho, às vezes, para sobreviver, somos obrigados a tomar
decisões contra a nossa vontade – disse o pai fazendo André
Gustavo imaginar que o velho soubesse de alguma coisa, mas não, ele
lembrou sua avó e completou:
-
Sempre segui os conselhos de sua avó. Todas as vezes que mudamos de
casa, foi porque a situação estava ruim, mesmo assim eu consultava
minha mãe antes... e ela, na sua humildade, me dizia: “filho, se
você não consegue alimentar a família aqui, faça igual aos
passarinhos, voe para outros campos.”
A
avó de André Gustavo viveu muito mais do que o suficiente para um
ser humano normal - cento e cinco anos. Foi então que ele voltou a
ver a paisagem de sua primeira moradia, o sobrado, do qual ainda
guardava lembranças nítidas. O rio, o morro, o cemitério, a
igrejinha, tudo estava lá, quase intacto, menos a casa de Dona
Agatha, em seu lugar havia um mato cerrado. A saudade o cercou em
festa, ele envolveu-se e a bebeu aos goles gulosos até saciar-se.
Correu os olhos buscando enxergar-se como uma criança que brinca
naquela paisagem. A igrejinha parecia ter ficado menor, o muro do
cemitério, encolhido, pois antes lhe encobria a cabeça, agora não
alcançava a sua cintura. A visão de criança foi se transpondo para
o adulto.
André
Gustavo reviveu um dia diferente e o retorno para a mesmice veio num
silêncio triste; junto com o olhar de Dona Esmeralda que, quieta, o
observava. Ainda ouviu o badalar do sino, presenciou o caixão saindo
no portal da igrejinha, o pranto de alguns, os passos medidos... o
ato silencioso até a sepultura ser coberta.
O
medo de falhar, por não ter um plano esquematizado, ainda lhe trazia
remorsos. Pois com o tempo, ele aprimorou-se. Hoje a mecânica de
seus crimes começa pelo final. Ele precisa se localizar, ao término
do primeiro ato, são e salvo, em lugar totalmente seguro. Às vezes,
o que será consumado numa fração de segundo, André Gustavo demora
semanas para iniciar e meses para concluir. Alguns são abortados no
meio do caminho. Nada pode estar fora do lugar. Cada passo
cronometrado. Jamais conta com a sorte disso ou daquilo vir a
acontecer após o tiro de largada. Ele joga o jogo arquitetado até o
fim. Uma mosca que voar fora da linha da mira, faz com que ele
desmonte o acampamento e retorne aos estudos.
Muitos
não sabem que deixaram de morrer, só porque na hora estipulada,
ocorreu alguma novidade que não estava em seus planos. E nesse exato
momento, veio-lhe à memória, o intrometimento do morador de rua:
-
“Por que esse caso vem me aporrinhar agora?” - perguntou-se
olhando para Dona Esmeralda.
André
Gustavo se lembrou da feição do magnata, que chegou à garagem de
casa justamente no horário previsto, mas foi abordado por um senhor
malvestido que trazia uma criança no colo e pediu ajuda. André
Gustavo, vendo seu plano falhar, ficou tocaiando o desfecho e ouviu
toda a conversa. Não é que o magnata ofereceu um emprego de caseiro
para o maltrapilho, mesmo sabendo que era um reles morador de
rua?!... E deduziu: se eu der cabo do infeliz, o outro desinfeliz,
quando voltar, não vai ter o emprego. Foi o único crime, não
completado, que o deixou satisfeito, mais realizado do que se o
assalto tivesse ocorrido sem problemas.
-
“Acho que me lembrei disso porque foi a noite que eu dormi com a
consciência leve. Parecia que eu havia praticado uma boa ação.”
André
Gustavo foi despertado pelas pancadas na porta e a voz forte.
-
Abra!... É a polícia.
André
Gustavo fez um sinal para Dona Esmeralda que ele abriria. Mal virara
a chave e cinco policiais entraram como cachorros atrás da paca
fujona.
-
Quem é você? – perguntou um para André Gustavo.
André
Gustavo pegou os seus documentos, mostrou e completou:
-
Estou só de passagem... Vim visitar a minha tia...
-
Vire-se – ordenou o policial revistando-o. - Espere aqui.
O
policial saiu e os quatro prosseguiram na busca até dentro do
banheiro. Dona Esmeralda manteve a mesma feição de bisavó que está
contente com a visita do netinho.
O
policial voltou e:
-
Muito bem, senhor André Gustavo – consultou os quatro policiais
que fizeram um sinal de nada suspeito. - Desculpe o transtorno.
-
Eu posso descer?... Trabalho numa pizzaria e... Estava mesmo de
saída... mas se não tiver jeito... eu me justifico com o patrão -
mencionou André Gustavo como se caso seu pedido fosse recusado, não
faria tanta diferença.
Houve
um instante de silêncio e:
-
Entregue isso, lá embaixo, na barreira – disse o policial
estendendo-lhe um cartão.
-
Obrigado – agradeceu André Gustavo entendendo ser sua liberação.
-
Venham. Vamos subir – ordenou para seus subordinados, retirando-se.
André
Gustavo aguardou um instante, afinal, um sobrinho afetuoso se
despediria da sua tia longamente. Após alguns minutos desceu
observando as pessoas que se mantinham dentro de suas casas, mas
olhavam curiosas pelas janelas.
André
Gustavo passou pela barreira sem problema. Apenas entregou o cartão
para um policial credenciado, que não parecia preocupado com a
segurança, apenas liberava a roleta para quem estivesse com o
ingresso de saída. Nem o vistoriou.
IX
- PARA QUE SERVEM OS AMIGOS...?
Começava
agora a via-sacra de André Gustavo. Solto numa cidade cheia de minas
ambulantes, temia esbarrar em alguma e não conseguir realizar o seu
intento. Aliás, seu único plano, elaborado em dois minutos, foi
comprar uma arma, de pouca utilização, na Farmácia do Lupércio.
Conhecia vários pontos de barganha desse produto proibido, mas não
tinha tempo para maiores negociações. Seu dilema era como entrar na
empresa de aluguel de helicóptero sem levantar suspeita. Encarou
como seu maior desafio, mas precisaria de ajuda, senão trabalharia
com grande chance de fracasso. Dali mesmo ligou para Godofredo Zebu:
-
Já saí da casa da comadre. Comprei o presente. Só falta alugar o
carrinho de pipoca, mas preciso de alguém que me auxilie, sozinho
não vou conseguir levá-lo.
-
Você conhece Caramelo? – perguntou Godofredo Zebu.
-
Conheço.
-
Diga que eu mandei... ele vai lhe emprestar o suporte que for
preciso... irmão. Poderá distribuir pipoca à vontade.
André
Gustavo conhecia Caramelo, tinha fama de bandido relaxado, tudo para
ele era fácil e sem perigo. Por isso, dificilmente ficava fora da
cadeia. O complicador maior era o trajeto que teria de percorrer para
chegar ao casebre de Caramelo. Precisava passar perto do Morro do
Cruzamento com a Avenida Princesa Isabel, ponto de comércio da
quadrilha de Benício, portanto, poderia colidir com o azar. O grande
trunfo de André Gustavo era o fato de que ninguém o imaginaria
perambulando por ali. Alinhando-se rente à parede, caminhou
cabisbaixo, atento ao movimento da avenida. Dois carros curvaram a
esquina em velocidade suspeita, ele, afoito, entrou na primeira porta
aberta. Após ocultar-se atrás da coluna, reparou que estava numa
sala de recepção e leu um cartaz ao lado da porta de entrada:
GLOBALIZAÇÃO
DIGITAL - Palestrante: Francisco L. M. Mendonça – engenheiro
ambiental formado pela Universidade Federal de...
Não
teve mais tempo de ler o restante, a sirena da polícia que se fez
ouvir, o obrigou a entrar como se ali fosse o seu destino e, com ar
despreocupado, caminhou pela sala; ao perceber outra placa, folgou:
ENTRADA FRANCA.
André
Gustavo, fingindo interesse no assunto, pegou um folheto e sentou-se
na última fileira. O palestrante chegava ao microfone nesse instante
e, sem cumprimentos, bradou:
-
“Somos o que comemos”, diz o dito popular. Portanto,
podemos inferir que: o Universo será formado por aquilo que
jogarmos fora. É cruel ouvir isso, mas a densa população
garante a sobrevivência das doenças. O espaço entre a palavra e a
ação não pode mais ser longo, senão a crença evapora.
O
palestrante tossiu propositalmente enquanto separava umas fichas com
anotações.
-
Boa-noite, sejam bem-vindos... Vou copiar a frase de um amigo meu: a
inspiração é como água da chuva, se não for represada, vai
embora... a oportunidade, também. Precisamos represar o que
ainda temos de bom na natureza. Eu me declaro contrário a alguns
movimentos suspeitos, descabidos, pois, se prosseguirmos nessa
evolução, em breve, vamos assistir à passeata dos...
sem-empresa, sem-carro, sem-mansão, sem-caviar... E
geralmente é uma minoria absoluta que exige um direito inexistente!
Pior ainda, nós financiamos esses movimentos caducos. Nos tempos
atuais, a natureza não pode ser largada na mão de subversivos.
Pessoas que manipulam produtos nocivos à saúde precisam ter, além
da formação acadêmica, um comportamento social consciente.
Agricultura, atualmente, não é só chegar, fazer um buraco e jogar
a semente. Envolve muito mais que isso. Muitos gostam de promover
estardalhaços na sociedade, mas doravante será diferente. Digo
mais: aquele que prevê problemas, sem apresentar soluções
exequíveis, atira pedra em santo morto... Ouvimos diariamente que
todos almejam a paz. Porém a impressão que fica, é que, afora nós,
resumido a esse pequeno grupo – apontou para a plateia - o restante
do mundo age de forma totalmente errada. E somente nós, confinados
em nosso egoísmo, seguimos a trilha dos ecologicamente corretos e
culpamos aquele que caminha do nosso lado, embora ele se julgue
também igual a nós, de atrapalhar a concepção plena da
felicidade. Onde estarão esses poucos que impedem a realização do
desejo de toda a humanidade?... Por que não são caçados como foram
os dragões mitológicos...?
André
Gustavo notou que a veia jugular do orador se mantinha alteada,
conservava a respiração presa para prosseguir no discurso
alucinante. Depois, respirou fundo e moderou o tom de voz.
-
Um cidadão, numa conversa escusa, teve a ousadia de confessar que
era um “propagador de doenças agrícolas". Isso mesmo...! Ele
contaminava as plantações sadias e ao mesmo tempo vendia os
defensivos. Um “criminoso internacional”. Visitava as
propriedades produtivas e numa pequena e inofensiva caixa de fósforos
levava os fungos e pragas que infestariam as culturas.
Após
um burburinho na plateia, ele prosseguiu:
-
Hoje se discute o que fazer com os nossos restos, rejeitos... que não
são poucos... desde o alimentar ao nuclear. Uns nocivos a longo
prazo, outros, invisíveis, inodoros e, imediatamente... letais.
Também não podemos nos ater a um dia específico, apenas para
comemorar um evento especial. Precisamos sim, despertar...! Os
séculos são formados por segundos. O Dia da Árvore, o Dia do
Índio, Natal, Dia da Criança, Dia Internacional da Mulher... Tudo
balela... Hipocrisia!... De que adianta plantar uma árvore em seu
dia... se no dia seguinte derrubamos uma floresta inteira? De que
adianta presentear as crianças em seu dia... se o restante... 364
dias... nos esquecemos delas?... Será algum tipo de compensação às
avessas...? Pretendem com isso salientar que os demais dias são
reservados aos destruidores...?
O
palestrante deu um sorriso desanimado:
-
Criaram até o dia “internacional” contra a corrupção...! – E
voltou-se para as suas anotações. - O ser humano está mais
preocupado em descobrir a sua origem e qual o seu destino, do que
debater um método que conserve a sua espécie e o ecossistema de seu
Planeta!... Embora façam reuniões globais, embora discutam em
salões refrigerados, bem iluminados, com estrutura de colunas
faraônicas, piso em granito exótico, mesas enormes, ornamentação
de flores que exalam seu perfume pelo ambiente. Embora sentem em
poltronas de couro, bebam água mineral, usem canetas, vestimentas e
calçados caríssimos... ninguém enxerga que toda essa mordomia
custou um alto preço para a Natureza e que retiraram, dos mais
necessitados, grande parte do pequeno quinhão que lhes cabia. Como
os problemas são visíveis, alguns até ridículos, são abertamente
enunciados... todos gostam de apontá-los, porém, como as soluções
envolvem decisões firmes e, às vezes, antieconômicas... permanecem
ocultas. Todos conhecem os problemas, mas transferem a solução para
os outros. E saibam que: à
medida que prorrogamos as decisões, antecipamos as catástrofes.
O
orador fez uma pausa numa expressão meditativa:
-
A origem do homem é tão conhecida quanto o seu destino. Aquele que
pensa que chegamos ao fundo do poço, está muito enganado, já o
ultrapassamos... há muito tempo.
Nesse
instante André Gustavo ouviu novamente uma sirene passar. O
palestrante dobrou uma folha de papel, coçou a orelha e analisou
sarcástico:
-
O homem saiu da idade da pedra lascada, mas terá que se aproximar
bastante dela para melhorar sua qualidade de vida. Tornou-se
poliglota, mas a impressão digital já é a sua maior segurança...
Quanto à reciclagem de materiais... primeiro é o povo que precisa
sofrer uma reciclagem completa. Mudar os procedimentos, os
costumes... Consertar esse caminho vicioso da comodidade. Tornou-se
escravo da tecnologia... Não emprega mais o bom-senso. Não temos
outra saída... ou mudamos agora ou nossos filhos e netos pagarão o
preço dessa inércia cívica. Por enquanto, o único inimigo que o
homem não conseguiu dominar... foi ele mesmo. Pior ainda... está
sendo dominado... pois os recursos naturais diminuem e a população
aumenta... conclusão?
O
palestrante olhou para a plateia e sem aguardar resposta deu
sequência:
-
Muitas bocas gritam... mas parece que não encontram ouvidos. Alguns
heróis, que já caíram no esquecimento, deram suas vidas por uma
causa digna, outros, anônimos, lutaram e lutam pelo mundo afora...
Será que um dia precisaremos escolher se queremos morrer de fome ou
envenenados?... Portanto, para que o nosso “MUNDO GLOBALIZADO” se
perpetue, é preciso que as regiões dispersas no Globo Terrestre
sejam divididas em três áreas - equivalentes às suas necessidades:
uma área reservada: capaz de manter as condições do ecossistema
num patamar saudável e intacto. Outra área fértil: suficiente para
a produção de toda a cadeia alimentar... humana e animal. E uma
terceira área para a construção de moradias e toda infraestrutura
de preservação e reciclagem exigida pela natureza. Isso significa
que, aliado a essa divisão, urgente e necessária, o ser humano
ainda precisará se apoiar num triângulo racional. Na primeira ponta
desse triângulo: uma produção de alimentos suficiente para
sustentar a população. Na segunda ponta: um controle de natalidade
proporcional à sua capacidade de produção alimentar e
habitacional. E na terceira ponta - aquela que dará sustentabilidade
real às duas primeiras: trabalho que gere renda e bens que
proporcione a sobrevivência de todos, por região, num excelente
equilíbrio socioeconômico. Não vejo nesse contexto, campo para o
convívio com as drogas, a violência e a irresponsabilidade
generalizada que presenciamos hoje. Todos serão controlados e
controladores. Pois, cachorro que ataca, fora do seu quintal, não
pode andar solto pelas ruas... Creio que só os honestos
sobreviverão, pois antevejo que a humanidade chegará numa
encruzilhada, em que se verá obrigada a escolher se quer viver em
paz ou em guerra, no entanto, independente de sua opção, a pena de
morte será adotada.
Revirou
alguns papéis.
-
As novas invenções, antes de serem postas em prática, serão
analisadas ecologicamente. Portanto, as gerações futuras podem ir
se acostumando com uma vida sem muita liberdade, mas cheia de paz...
e regras. E lembrem-se: só podemos ser contra, se estivermos a favor
da ética ou do bem-estar... Senhores, abriremos agora uma sessão de
debates... Contamos com a nobre presença do nosso digníssimo...
André
Gustavo não estava a fim de debater a salvação da humanidade. Ali
não era lugar para ele. Como poderia se interessar em salvar o
Planeta se a sua pele estava em perigo? Saiu rastejante para o lado e
retirou-se do salão. André Gustavo sabia que após uma sirene
passar, poderia seguir direto para o casebre de Caramelo, sem
problemas, pois nenhum amigo de Benício estaria circulando por
perto.
Caramelo
mostrou-se atencioso. Ele gostava realmente de Godofredo Zebu.
-
Ajudar um amigo de Godofredo é um prazer... Godofredo é sangue bom,
já me livrou da cadeia muitas vezes – declarou folgadamente.
André
Gustavo conseguiu o que pretendia: um paletó de executivo e um
disfarce importado; com direito, além de uma peruca, sobrancelhas e
bigode, uma cicatriz que cortava do pescoço à face, mostrando,
inclusive, alguns pontos em cicatrização. Acompanhado de dois
seguranças, num carro com motorista, seguiu para a empresa de
táxi-aéreo.
No
percurso, André Gustavo desligou-se de seu mundo. Talvez porque não
estivesse acostumado a dirigir-se a um lugar, sem saber o que
encontraria. E se estivessem festejando o aniversário de algum
funcionário e deparassem com a recepção cheia de convidados? Por
isso, para não imaginar situações abstratas, sua mente viajou pela
infância...
A
primeira imagem que lhe veio à cabeça, ele acatou... Brincava com
uma enorme roda de ferro, dentada e enferrujada. Aquela peça
metálica de trator era o seu precioso brinquedo, que foi largado por
algum adulto que não entendia o valor de uma simples roda para uma
criança de cinco anos de idade. Ele empurrava o artefato ao redor do
sobrado em que morava como se cumprisse extensa e árdua tarefa, com
hora marcada para chegar. Valendo-se de um pedaço de pau, fazia a
roda girar cada vez mais veloz, que quase não conseguia
acompanhá-la.
Algo
distraiu sua atenção e André Gustavo parou, abandonando a roda.
Observou a sua irmã e sua prima que corriam atrás de uma borboleta.
Ele torcia para que o inseto as ludibriasse em seu voo inconstante.
Elas reclamavam dos volteios que eram obrigadas a executarem a todo
instante. André Gustavo sorriu, prevendo que elas se chocariam, de
testa, quando a borboleta passasse entre as duas. Atentou só mais um
instante e aconteceu o esbarrão. Após culparem-se mutuamente pelo
fracasso, ambas, querendo ser a primeira a reclamar com um adulto,
saíram em disparada rumo ao sobrado. Rindo delas, ele não percebeu
que a roda de ferro voltava em círculos ondulares, perdendo força,
justo em sua direção. A roda atingiu o peito de seu pé esquerdo.
Sentiu a dor de um espinho penetrando na carne. Após erguer a perna
e assoprar o machucado, olhou o corte pequeno e fundo, que mostrava
um nervo branco, matizando-se de vermelho, pelo sangue que brotava.
Não
iria mostrar o ferimento para a sua mãe. Levaria, além do esbregue,
uma coça talvez. Sua mãe já se encontraria nervosa porque as duas
estavam a importuná-la com os lamentos costumeiros.
Saiu
de mansinho para o rio. Enfiou o pé esquerdo na areia e rezou para
que aquele corte criasse uma fina casca bem rapidinho e ninguém
ficasse sabendo. Permaneceu ali, por muito tempo, quietinho, pensando
o que estaria acontecendo com o seu pé soterrado na areia. Depois de
cansar de ficar sentado, ergueu-se sem desenterrar o pé, pois não
tinha coragem de olhar para o machucado. Andou pela margem das águas
até ao seu pesqueiro de camarão.
O
pesqueiro nasceu na noite da maior enchente. O rio subiu tanto, que
arrastou a pinguela e molhou dois, dos quatro degraus da escada do
sobrado. André Gustavo vasculhava as margens cheias de galhos que as
águas barrentas trouxeram e encontrou, semi-recoberta, uma cabeça
de boi com apenas um chifre para fora da água. Curioso, alçou a
mesma para a areia da margem e qual não foi a sua surpresa; de
dentro dela saltaram quatro camarões bem criados. Ele pegou os
camarões e recolocou a cabeça de boi em seu devido lugar. Ali
passou a ser o seu pesqueiro, pois, todos os dias, ele acordava de
manhãzinha e se dirigia ao rio. Sua aproximação cautelosa, pé
ante pé, era necessária, pois qualquer barulho espantava os
crustáceos. Mas ele nunca falhava no bote, no mínimo, sempre dois
pulavam como se tivessem sidos acordados no susto.
Porém
o problema agora era o seu pé esquerdo. A água fria ardia um pouco,
ele tentou ver o ferimento através da lâmina de dois palmos d'água
que balançava a imagem distorcida. Focalizou o corte. Agachou para
ver mais de perto. Molhou o calção, mas não se importou, porque o
machucado estava praticamente curado, apenas uma depressão na pele,
ninguém notaria. Caso alguém lhe perguntasse, diria que não tinha
visto, nem fazia ideia de onde havia se machucado.
-
Estamos chegando. Como vamos entrar? – perguntou um dos seguranças
de Caramelo.
André
Gustavo despertou de suas lembranças sem susto: “dizem que Deus
protege as criancinhas, agora eu tenho certeza que sim.”
–
Vamos chegar normalmente para alugar um helicóptero – disse
consciente.
André
Gustavo correu os olhos em derredor. Tudo calmo. Achou que se
planejasse durante meses a fio, o ambiente não estaria tão
propício.
Os
seguranças desceram e André Gustavo desembarcou atento, caso alguém
da corriola do Benício estivesse de vigília, não seria pego
desprevenido. Depois se pôs à frente, já que fazia o papel de um
personagem importante, que necessitava ser escoltado por dois
seguranças. Adentrou ao escritório. Uma mocinha sorridente veio
atendê-lo.
André
Gustavo mostrou os documentos falsos conseguidos com Caramelo e
explanou a sua necessidade de um voo urgente para o Porto de Ubu, em
Anchieta. Tivera diversos contratempos e agora precisava embarcar num
navio, que já o aguardava com alguns empresários do ramo da
mineração.
A
mocinha, pelo telefone, requisitou a presença de dois pilotos. De um
vão, acortinado, chegaram dois rapazes. Os seguranças retiraram as
armas e anunciaram o sequestro. Aconteceu o que André Gustavo temia.
Atropelaram seu minúsculo plano. A empresa de táxi-aéreo só
deveria tomar conhecimento da quebra do contrato, pela polícia e
isso, após ter retirado Godofredo Zebu do Morro do Junqueira e já
se encontrarem sãos e salvos, em terra.
Sem
entender o ocorrido André Gustavo baixou a cabeça e sussurrou para
um dos seguranças:
-
“O que houve?”
-
“Um deles é velho conhecido da gente. A abordagem não poderia ser
de outra forma” – garantiu o segurança.
-
“Qual deles?” – perguntou André Gustavo sem olhar.
-
“O de jaqueta amarela.”
Agora
o jeito era improvisar. Os seguranças deveriam ficar ali até o
final da operação.
-
Você! Vai ser o piloto – ordenou André Gustavo para o outro.
O
rapazinho, de vermelho ficou da cor de vela. Suas mãos tremiam
incontroláveis. André Gustavo teve receio que ele não conseguiria
levantar voo naquele estado. A mocinha rezava de mãos postas.
-
Venha cá – André Gustavo foi até o bebedouro. – Tome. - Disse
esticando um copo com água para o piloto. Ele bebeu nervoso. –
Agora respire fundo – recomendou, e orientou os seguranças: –
Vocês fiquem aqui até eu entrar em contato. Se chegar alguém...
rendam... verifiquem se portam celulares... Olho vivo em tudo!...
Pronto para voar, rapaz?
O
rapazinho demonstrou que já havia assimilado o golpe, mas só
sacudiu a cabeça.
-
Faça todos os procedimentos normais, sem truques, que você voltará
vivo com a sua aeronave. Não me crie problema que não terá
nenhum... entendeu?
Novamente
o rapazinho usou o pescoço como língua.
-
Nosso voo será para o Porto de Ubu. Vamos rápido!
A
passos largos, André Gustavo seguiu o piloto com os olhos pregados
no vazio do pátio e o cérebro esboçando alguns minutos do futuro.
No hangar, mais ao longe, alguém trabalhava num aeroplano. Aquele
vasto galpão fez André Gustavo voejar nas recordações. No chão
ainda se viam as marcas deixadas pelas caixas que foram retiradas,
após ali permanecerem por longo tempo. Em sua memória ouvia o
barulho das engrenagens em funcionamento. Funcionários lhe passavam
informações, peças caíam, sorrisos abertos. Gritos de: “força
rapaz!”
Lembrou-se
do tempo que conseguiu ser gente e trabalhou numa empresa de
transporte. O trabalho era pesado: carga e descarga de caminhões. Na
hora do almoço, em papo descontraído, ele contava as suas façanhas
nas conquistas amorosas. Época em que André Gustavo ajudou muito os
seus pais, pois eles se sentiam abandonados, já que seus irmãos
sumiram no mundo. Mas essa vida de herói não durou muito, penetrou
em seu âmago o sentimento de culpa pelo ato impensado, não o
primeiro, porém o mais o trágico. Aquele que fez com que ele
aposentasse sua criatividade por longos anos.
Durante
uma reunião com a diretoria, André Gustavo ficou sabendo a real
situação da firma.
-
Como salvar a empresa da falência? – perguntava um dos gerentes do
transporte.
-
Precisamos de imediato reduzir custos, incrementar incentivos entre
os motoristas para conseguirem fretes e não retornarem com os
caminhões vazios de seus destinos – responde um com a barriga
estufada no terno azul.
-
Não é tão simples assim... estamos seguindo todos os critérios
para uma boa administração... só que para alcançar resultado
positivo demora anos...
-
Não temos nem mais três meses...
André
Gustavo ouvia a conversa atentamente. Temeu perder seu emprego e cair
novamente na rua da angústia. Sua mente maliciosa o obrigou a
confabular umas gracinhas. Caso recusassem, diria que era uma
brincadeira... um trote.
-
Arranjem uma carga muito valiosa... com frete caríssimo... para uma
localidade distante...
-
Como se fosse fácil... um milagre caindo do céu no pátio da
transportadora – interrompeu desanimado o gerente.
-
Calma, chefe!... – exclamou André Gustavo sorrindo. - Transportada
em um caminhão preparado para não chegar ao destino...
-
Como assim, moleque topetudo? – estranhou o gerente.
André
Gustavo, temeroso de ser despedido antes do tempo, completou:
-
Uma nota fiscal verdadeira... com mercadoria falsa...
-
O inverso do que se vê por aí?... Não entendi como! – riu um dos
diretores.
André
Gustavo notou que não houve rejeição à proposta indecorosa e
prosseguiu:
-
Seguro. Seguramos o caminhão e a carga... faturamos para um cliente
conluiado. Receberemos do seguro... o valor da carga, do caminhão e
até do frete... rateamos o...
-
Deixe de ser idiota, o seguro só cobrirá o valor dos bens
transportados... ninguém ganha com isso... é apenas um reembolso...
isso com muito custo e é bem provável que tenhamos mais prejuízo.
-
Calma! – repetiu André Gustavo firme no que dizia, pois agora
notou a aceitação geral. - Eu disse: com nota fiscal verdadeira e
mercadoria falsa. Quando você transporta um líquido... que em
contato com o ar se torna gasoso... quem poderá medir a carga
original? Ou um líquido que penetrou no solo, ou um material que
pegou fogo...
-
Você está insinuando que devemos...
-
Não, não, apenas estou dando uma resposta para a sua pergunta,
chefe. De como salvar a empresa da falência...!
André
Gustavo achou que iria receber uma bronca, que seria até ameaçado
de demissão por justa causa pela ousadia, mas parece que a
honestidade, quando se vê à beira do abismo, não segue em frente,
escolhe um atalho.
-
Chefe! A artimanha dele parece boa... – comentou o de terno azul.
-
Podemos sair do sufoco com esse artifício... faturar alto e viver
folgado – endossou um dos diretores de olhos vivos e gananciosos.
-
Só peida folgado quem está sentado no sanitário... Precisamos
estudar muito bem isso... e com cuidado – precaveu-se o gerente
olhando sério para os demais.
Foi
assim que armaram o carregamento mais precioso da empresa. Uma nota
fiscal verdadeira com mercadoria falsa. Um motorista
recém-contratado, em sua primeira viagem. Um desastre com plena
chance de acontecer numa descida. Um explosivo acionado a distância,
um descontrole, uma pequena explosão. O incêndio consumiria todas
as provas e o seguro reembolsaria tudo o que não foi gasto.
-
“Talvez a operação possa ser repetida, após alguns meses, com
outros materiais” – pensamento que ninguém externou, mas rodou
na ideia de todos.
O
esquema dos explosivos foi montado por um especialista no assunto. Na
empresa, o golpe parecia a descoberta da pólvora, que só não
poderia estourar antes da hora marcada. Medidas preventivas, ensaios
e testes de como os fatos se desenrolariam foram, minuciosamente,
preparados. Tudo precisava funcionar como um relógio. Os ponteiros
não poderiam parar. No fatídico dia todos deveriam agir com
naturalidade. Era apenas mais uma carga que saía da empresa com
destino certo.
O
suor nas mãos do gerente, ao despachar a suposta carga valiosa, foi
enxugado no uniforme. O olhar do chefe, ao observar pela vidraça do
terceiro andar, o caminhão sair pelo portão da empresa partindo
rumo ao destino anunciado, foi solitário.
André
Gustavo caminhava pelo pátio com vontade de correr atrás do
caminhão e mandá-lo parar. O arrependimento pela maldita sugestão
veio forte, mas já era tarde. Depois, se desse certo, além de
garantir o emprego, ele teria como recompensa, uma parte gorda.
Quatro
horas angustiantes à espera de notícias. As primeiras informações,
lamentosas, foram confirmadas pela alegria do chefe, após ordenar
que três de seus funcionários, que nada sabiam, fossem ao local do
acidente apurar e tomar as medidas necessárias.
André
Gustavo só sofreu o baque uma semana depois, quando viu a esposa do
motorista. O arrependimento e a culpa, embora em silêncio,
exacerbaram em tamanho. A viúva, chorosa, com um filho no colo e
outro arrastado pelo braço, chegou à empresa para receber os
direitos do falecido marido. André Gustavo, não suportou a cena e
retirou-se do recinto.
Quatro
meses depois, a cúpula da empresa se reúne e comunica que executará
o plano novamente. André Gustavo não concorda e avisa:
-
Pode levantar suspeita na seguradora.
O
chefe rebate:
-
Você é inteligente, mas muito medroso...
André
Gustavo não gostava de viver à mercê da sorte. Aborrecido, pediu
demissão da empresa.
Quando
a ganância elabora suposições, a razão foge do controle. O
acidente foi além do previsto, após a explosão, o caminhão
desgovernado, passou por cima de uma procissão em homenagem a São
Braz, arruinou diversas casas, causando uma tragédia sem precedentes
na região. Mais de cinquenta mortos e noventa e cinco feridos,
muitos, gravemente. O seguro cobriu a parte dele, mas a empresa não.
A maior culpa recaiu sobre o pobre e inexperiente motorista azarado,
que não conhecia a estrada e morreu no acidente. A empresa faliu.
André
Gustavo, ao tomar conhecimento do ocorrido, jurou que doravante seria
um caça-dotes, só se interessaria por mulheres de posses visíveis
e nunca mais se entregaria a desentocar golpes para pessoas
inconsequentes.
André
Gustavo olha para o lado. Saúda a saudade corrosiva. Aquele galpão
vazio, hoje, encheu-lhe de pesadelos. Relembra seu velho pai:
-
A matemática pode ser complicada, mas alguns seres humanos...!
Nossa...! São indecifráveis.
X
- ASSUMINDO O COMANDO
O
helicóptero levantou voo normalmente. André Gustavo se instalou
atrás da poltrona do piloto. Não queria ficar medindo a altura que
se encontrava. Tinha medo dela. Além disso, lamentava estar exposto
ao crime sem um plano estratégico de final programado. Como não era
acostumado a criar nada sob pressão, precisava atentar aos
movimentos do piloto.
-
Retire esses fones do ouvido – ordenou André Gustavo para evitar
alguma intervenção externa e, com receio de uma negativa, ordenou
firme:
-
Agora vamos para o Morro do Junqueira.
-
Morro do Junqueira, aqui perto...?!
-
Sim, aqui perto. Facilitei pra você. Mas aja como se fosse passar
direto. Quando estiver no topo do morro... pouse rápido.
-
Pousar lá?... Não tem espaço para...
-
Vai ter... não se preocupe.
-
Pode, pelo menos, me informar o motivo, Senhor?
-
Não. Apenas obedeça e pouse...
-
Mas se eu tentar isso... podemos morrer.
-
Se não tentar também.
O
rapazinho deu uma olhada ligeira para trás e voltou resmungando.
-
Já que não há alternativa... vamos ao... suicídio.
André
Gustavo ligou para Godofredo Zebu.
-
Estou a caminho com o presente. Prepare-se.
-
Você é cabra de palavra, André...
-
Nada de nomes... Mano! – aconselhou André Gustavo.
-
Compreendido, Mano... A polícia está a uns cento e cinquenta metros
daqui...
-
Você acha que eles podem... tentar... impedir... você entende?
-
Atirar para derrubar o helicóptero?
-
Terão essa ousadia?
-
Não creio, mas não posso garantir nada!
-
Pronto para arriscar?
-
Eu não tenho escolha, cara... Estou em suas mãos...!
-
Então pegue tudo que precisar e espere na laje...
-
Numa laje? – perguntou o piloto. – Não dá... não posso pôr em
risco a...
-
Já estou pronto, Mano! – sustentou Godofredo Zebu.
-
Não me venha com desculpas...
-
O que houve, Mano? – perguntou Godofredo Zebu.
-
Nada... Nada... Espere só um instante - avisou André Gustavo.
-
É caso de emergência?... Socorro médico? – questionou o piloto
com um alívio na face.
-
Nada disso...
-
Então... quantos passageiros são, compadre? – indagou o piloto
desaforado.
-
Apenas um.
-
Apenas um?!... Ele é capaz de subir sozinho?
-
Claro...
-
Então mande que ele fique com uma lâmpada ou uma lanterna...
piscando.
-
Mano!... – chamou André Gustavo.
-
Estou na escuta...
- Arranje uma lâmpada... ou uma lanterna e fique fazendo pisca-pisca
com ela... para o piloto saber onde deve pousar...
-
Não posso pousar... esses casebres de favela não suportam peso. Vou
estabilizar o aparelho no ar... ele que se vire para subir... Nessa
questão vocês não têm escolha!... Repasse isso.
-
Mano... o piloto não vai pousar, vai parar no ar... Manja?... Tipo
beija-flor... pois é... vai ser assim. Aí você se vira...
entendeu?
-
Valeu, irmão!... Vou fazer igual nos filmes de ação!... Já estou
sentindo até a adrenalina! –– comemorou Godofredo Zebu.
-
Tomara que não tenha muito vento – comentou o piloto.
-
Confio em você... tanto que estou aqui em cima.
-
Pode me falar ao menos o motivo, de tanta pressa, agora?
-
Não. Já disse que não. Apenas execute.
André
Gustavo não arriscava olhar para baixo, sua acrofobia não permitia.
Sempre teve medo de altura, desde criança temia...
Foi
neste momento que lhe faiscou na lembrança sua aventura de
atravessar a pinguela sobre o rio e levar bolachas para Dona Agatha –
nome soberbo para quem nada possuía, tampouco correspondia ao seu
rosto singelo, com dois olhos negros e chorosos de santa de altar.
Comentavam que ela era um misto de feiticeira com benzedeira, porém,
católica fervorosa. Viúva, sem filhos, muito pobre, morava sozinha
e portava uma idade não sabida, mas avançadíssima se comparada aos
cinco anos de André Gustavo. Nas tardes lentas de verão, sentados
sob um pé de ingá, ele conversava com ela como gente grande. André
Gustavo ficava mais preocupado com a volta para casa, do que com a
solidão da velha anciã, pois precisaria atravessar, de novo, a
pinguela. Ela sorria e os ombros esqueléticos acompanhavam, aos
solavancos, o ritmo dos risos - parecia que uma coisa estava ligada à
outra. Sem sacolejar os ombros o sorriso não saía. Por vezes, André
Gustavo chamava seus irmãos para pegarem um gambá, dos muitos que
se escondiam no meio das tralhas inúteis que ela guardava num canto
de um quarto sujo. Ela não reclamava pela invasão dos marsupiais,
pois gambá ensopado se tornara o seu prato predileto. Fato que ela
declarava abertamente, causando nojo em André Gustavo. Hoje, ele
sabe que era porque não havia outra comida disponível para ela.
Naquele
lugar ele se sentia um rei. Era feliz e sabia. Tinha tudo, pois na
sua imaginação, após aquela paisagem bucólica e amorreada, não
existia mais nada.
O
pai de André Gustavo fazia pão, bolachas, suspiros e roscas. Assava
tudo no forno à lenha, que ele mesmo construíra próximo ao
sobrado. André Gustavo separava algumas bolachas, ainda quentes e
atravessava o milharal, pegando a picada da temível pinguela para
chegar ao casebre de Dona Agatha. Seu sorriso santo era um pagamento
valioso para o menino. E toda vez ela o mandava esperar um pouco; ia
para trás do quintal e arrancava algumas ramas de mato. Voltava com
o mesmo sorriso e depois, compenetrada, rezava numa língua estranha,
que mais parecia o vento cortando as frestas de uma janela quebrada.
Raspava a ramagem junto ao corpo de André Gustavo que, na maioria
das vezes, ria pelas cócegas que as folhas lhe causavam no pescoço.
A velha, depois de rezar, completava com palavras:
-
Isso o livrará de todo mal que aparecer em seu caminho, meu
filho!
Essas
palavras ficaram guardadas no susto que André Gustavo levou ao ouvir
o piloto berrar:
-
Tem uma luz piscando lá embaixo...!
André
Gustavo buscou verificar. Segurando-se bem forte na barra de ferro,
localizada perto da porta, espiou para fora.
-
É lá sim... pode descer – sinalizou André Gustavo.
-
Não vai me contar o que está acontecendo... nem agora? - perguntou
o piloto.
-
Não insista... desista – decretou André Gustavo.
O
helicóptero roçou suas hélices sobre os barracos. Algumas telhas e
folhas de amianto soltaram-se, quebrando-se em seguida sobre os
outros telhados. Godofredo Zebu, deitado sobre a laje, aguardou na
medida certa para levantar-se e segurar na alça do trem de pouso do
aparelho. Num pulo, atirou-se para cima.
André
Gustavo, ao ver a laje tão perto, perdeu o medo da altura e segurou
no braço de Godofredo Zebu, ajudando-o a subir.
-
Pronto. Vamos embora – gritou Godofredo Zebu ajeitando-se na
poltrona.
O
piloto, calmamente, ergueu a aeronave e perguntou:
-
Qual o destino, Senhores?
André
Gustavo, surpreendido, travou. Não havia planejado nada. Seu
objetivo era chegar ao topo do Morro do Junqueira e pegar Godofredo
Zebu, a preocupação com a altura e as lembranças, obstruíram seu
cérebro criativo, mas talvez fosse melhor não se envolver, poderia
até sair livre desse enrolo. Jogou a responsabilidade do plano para
Godofredo Zebu:
-
Diga aí, Mano... seu destino. Daqui pra frente o comando é seu –
adiantou André Gustavo.
Godofredo
Zebu olhou para André Gustavo, mordeu a língua duas vezes e
murmurou:
-
O que você acha do interior? Eu tenho uns contatos. Saltamos no meio
de uma estrada com alguém a nos esperar. Que tal?
-
Por mim, está bem – disse André Gustavo, pois o executivo que
todos viram não era ele mesmo...!
-
Toca esse besourão para as montanhas – decretou Godofredo
Zebu. – Vou avisar para um chapa esperar a gente na subida de
Campinho. Tem uma fazenda no esquema... o Lagartão sabe que...
André
Gustavo coçou a cabeça e avisou:
-
Seu celular... pode estar...
-
Rastreado?... Não, esse é novo. Mano, você está me lembrando
Aurelino, vulgo “Cientista”, minha alma gêmea psíquica que
encontrei no presídio de segurança máxima...
André
Gustavo fez uma cara de espanto, Godofredo Zebu gargalhou e:
-
Explico: era impossível não concordar com suas ilações... embora
fosse um cientista, bradava algumas verdades:
-
A vida não é uma guerra – dizia ele - é uma sequência de
batalhas em diferentes idades. Mas há uma batalha que quem dela
deserta é herói... a batalha das drogas. Quem participou dessa
infame guerrilha social, sabe o que estou falando.
-
Nisso ele tem razão, Mano... Drogado você não é ninguém –
comentou André Gustavo.
-
E eu não sei!?... Compro... vendo, mas não uso. Não sou besta!...
Deixo isso pros manés que experimentam e viciam... E quem rouba e
mata são os babacas... eu só assisto de camarote. Repito a trova de
meu amigo Zé Escorpião – Godofredo Zebu cochichou para André
Gustavo – “o cabra ganhou esse apelido porque matava com o
rabo... era soropositivo”: se não houver pecador... não haverá
pecado... se não houver consumidor... não haverá mercado. A
banda podre está do outro lado, Mano... lá, a roubalheira é
legalizada. Zé Escorpião dizia abertamente: Uns, se pervertem
por falta de comida, outros, por falta de caráter.
E
como se o papo fosse importante, Godofredo Zebu retornou ao assunto
de Aurelino “Cientista”:
-
Aurelino e eu conversávamos muito. Contemplávamos a lua quando ela
subia e passava justo na janela da grade. Mudávamos de posição só
para acompanhá-la. Era a visão mais bonita que tínhamos do
exterior. Nessa hora bate uma saudade da família, Mano...! Revivemos
as brincadeiras, os passeios... Até os aborrecimentos são
bem-vindos para afugentar a angústia. Às vezes, eu também
reclamava:
-
Sabe, Aurelino... sempre me pergunto por que eu não procurei levar
uma vida decente.
-
Ah! Meu amigo – dizia ele - Depois que se passa pela porta
do mal, as do bem se fecham todas, automaticamente. E nem
sempre podemos escolher nosso caminho... Livre arbítrio o
escambau!... Como diz um amigo meu: urubu come carniça, não porque
gosta, mas sim, porque é o que lhe sobra. Analiso isso sobre o
esquema do mundo atual. As modificações sociais e culturais que o
homem implementou ao longo da história, fizeram alguns heróis se
sentirem bandidos e bandidos se transformarem em heróis... Muitas
inovações, em vez de auxiliarem, acabaram deturpando o
desenvolvimento da humanidade...
-
Você queria que o homem ainda vestisse pele de leopardo, vivesse nas
cavernas e se alimentasse de caça e pesca? – eu perguntava
imitando um macaco.
-
Nem tanto assim – respondia ele levando a sério a brincadeira
-, mas o homem passou do momento em que Deus olhou para a sua obra
e achou que estava concluída. E sabe por quê?... Por ganância... a
ganância fez com que a sua cria insistisse em ir adiante... num afã
louco de conseguir cada vez mais, mais e mais. Ainda bem que os
doutores se compadecem dos delinquentes e nem cogitam em implantar a
pena de morte... Então os pilantras aproveitam e barbarizam, já que
o único bem que eles temem perder não está em risco... que é a
vida.
-
Nessa hipótese eu concordava com ele. O homem está realmente
querendo conquistar tudo, Mano e vai acabar se destruindo. Aurelino,
ao receber o meu apoio, se empolgava:
-
É exatamente isso, rapaz!... Ele voa cego... parece que não tem
tempo para pensar no amanhã... embora muitos fiquem alertando, a
toda hora, que na frente, o que lhe espera é um precipício... sem
retorno... ele prossegue na sua ganância... se esquece de buscar a
felicidade.Veja você: muitos cidadãos de bem, ficam indignados
quando presenciam uma injustiça, mas falta, a esses cidadãos, força
de vontade e predisposição para tomarem a frente dos órgãos
gerenciadores e aplicadores das leis...!
-
Por que estamos filosofando sobre a evolução milenar da humanidade
se estamos... encarcerado num cubículo? – perguntava eu irônico.
-
É só uma contradição momentânea – lamentava-se Aurelino e
saía direto para outro papo incoerente:
-
Às vezes chego a me perguntar se o petróleo que retiramos não é o
lubrificante do eixo da Terra – e soltava uma gargalhada
espontânea. Eu aproveitava para elogiá-lo mais ainda, pois sabia
que ele gostava.
-
Aurelino, agora o companheiro demonstrou toda a sua criatividade
humorística!... Realmente você vê a vida por um prisma satírico e
inteligente. Ele acrescentava:
–
As esferas vão enferrujar e a Terra vai parar. De um lado noite...
do outro, dia – e ria, à vontade, da própria besteira.
Recostava-se na parede e após alguns risos incontidos demonstrava
seu verdadeiro sonho:
– Mas o que eu desejo mesmo é possuir uma fazenda bem
arborizada, com uma nascente de água cristalina, algumas cabras, um
bom cavalo e... - suspirava fundo - uma família –
confessava com o semblante coberto de nostalgia. Dava dó, Mano. E eu
incentivada:
-
Continue sonhando, meu velho, pois parece que esse é um sonho
contagioso. Acho que quem fica confinado nesse cubículo, quando sai,
quer ver sempre o horizonte bem distante. Muitos de meus amigos têm
esse mesmo sonho... E ele se intrometia:
-
Isso nem pode ser chamado de sonho e sim, de maturidade. Porque
quando se atinge certa idade, as pessoas começam a andar com os pés
e cabeça no chão... e enxergam que a melhor vida, é aquela
simples... que a natureza oferece gratuitamente, mas os humanos
desvirtuaram e criaram atalhos para banquetes perigosos... de
sobrevivência cômoda. Vou fazer sessenta e três anos daqui cinco
meses...
-
Meus parabéns antecipados, pois acho que não... irei cumprimentá-lo
no dia.
-
Por que não?... Quem vai morrer?... Eu ou você? - perguntava
assustado. - Saiba que o amanhã é tão incerto quanto às
previsões dos videntes! - gozava ele. - Teve algum
pressentimento sobrenatural, rapaz?
-
Eu não podia responder que estava com o plano de fuga em andamento e
que, provavelmente, não estaria mais ali. Ele confessava que não
queria sair da cadeia devendo à justiça. Então brinquei:
-
Não estou muito certo, mas daqui a cinco meses, estarei na
Alemanha... em férias perpétuas.
-
Ah! Bom!... Férias perpétuas... Ótimo motivo para não
comparecer... está perdoado, rapaz... – mangava alegre.
-
Mas a guerra maior de Aurelino era com o Padre. Ele reclamava porque
assegurava que ali não era o seu lugar. Dizia bravo:
-
Eu não devia estar aqui... sou um cientista... não um criminoso
qualquer - com o semblante sempre fechado e sisudo, praguejava: a
justiça é lenta, porque o crime cometido numa fração de segundo,
devora décadas para ser julgado por aqueles mandriões.
-
De manhã acordava como se tivesse passado a noite em um velório.
Conversava longas horas com o Padre encarregado na catequização das
almas pecadoras do presídio. A discussão era ferrenha e, às vezes,
desrespeitosa por ambas as partes... chegavam aos empurrões. O Padre
bramia justificando:
-
O mundo está cheio de desvio de caráter se confundido com fobia.
-
Seu Padre, eu tive amigos de fé que me traíram e inimigos,
declarados, que me ajudaram – revelava Aurelino.
-
Padre, não acredite nesse cara...! Ele mente até para o Senhor
quando se confessa! – instigava um, de cima do beliche da cela
ao lado.
-
O vigário aconselhava:
-
Filho, não apague o sorriso da vida com um sopro de metal. Vocês
sujam a bandeira da paz com sangue. Meu Deus, os homens ainda se
assustam com a inteligência dos símios e não se espantam com a
ignorância humana!
-
Acho bom esse Sacerdote casar e deixar a gente em paz –
resmungava um ateu lá longe.
-
O Padre, com ouvido de tuberculoso, retorquia:
-
Pouco me importa o que os outros acham... daquilo que eu tenho
certeza. Os compromissos de um padre com Deus são maiores que os
laços familiares. Alguns se concentram apenas na sua oração
egoísta e Deus passa ao lado deles e eles nem notam.
-
Padre, Aurelino traiu a esposa com uma prostituta que era aidética.
Depois mandava carta anônima ameaçadora para ela – caguetava
o do beliche.
-
O Padre, às vezes, perdia a estribeira e falava desbocado também:
-
Fazer comentário anônimo, é o mesmo que defecar na calça, por
vergonha de mostrar a bunda para o mundo, seu desalmado.
-
Aurelino, mesmo amedrontado, reagia zangado com o colega:
-
Ela não pode saber jamais disso!... Deus me livre!
-
Oh, excomungado! – esbravejava o Sacerdote. - Não tome o
Santo Nome de Deus em vão. Nesse caso é melhor você apelar para o
diabo... assim seu pecado será menor.
-
Padre, qual o relacionamento que devo manter com Deus?... Tratá-Lo
como amigo de rua, pai ou como Chefe Supremo, com respeito e medo?...
Deus é rancoroso? Devemos agir como súditos? – perguntava
Aurelino querendo encrencar o Padre.
-
Qual o relacionamento que você mantém com o seu pai mundano,
Aurelino? – devolvia a pergunta o Padre. Aurelino nem piscava
na resposta:
-
Padre, só desavença... eu e meu pai saímos na pancada muitas vezes
e até de faca já nos atracamos.
-
O Padre calmamente respondia:
-
Então você não precisa se preocupar como se comportar perante
Deus, deve sim, se preocupar como se relacionar com o diabo... porque
se você não se arrepender... é isso que vai acontecer.
-
Essas palavras marcavam como ferro em brasa as mentes esfoladas dos
presidiários.
-
Tudo aqui é difícil, Padre... é muito confuso. Para quem a
verdade dói, a mentira traz alívio – gracejava outro no
escuro de uma cela.
-
Se você acha que tem problemas hoje, meu filho, espere chegar o
anoitecer dos tempos. Verá que a verdadeira riqueza da vida, não se
armazena em sacos.
-
Deus se esqueceu da gente aqui dentro, Padre – replicava
malicioso Aurelino.
-
É porque você nunca conversou com Ele, desnaturado –
esbravejava o Padre. – E não seja egoísta, antes de rezar para
você, peça a Deus para livrar seu próximo de todos os males.
-
Deus é que nunca puxou conversa comigo! - respondia Aurelino
bem irônico. O Padre ruía as unhas e o repreendia atarantado:
-
Você dá bom-dia para o seu vizinho de cela mesmo sem o conhecer,
mas ao acordar, aposto que você nunca deu um bom-dia para Deus... E
ainda quer que Ele puxe conversa com você, seu ateu?...
Deus fez a lei e definiu o castigo... Infelizmente, no
mundo, têm muitas marionetes trabalhando, fielmente, para o diabo.
-
Ao final de horas, ambos saíam da batalha divinal com a mesma
opinião, ou pior, Aurelino mais fortalecido e o Padre mais
decepcionado com o "cabeça de camarão", como lhe
cognominara.
-
Porcaria de celular!... Não está dando sinal – reclama Godofredo
Zebu batendo no aparelho. - Opa!... Deu agora!
Após
alguns segundos:
-
Lagartão!... Descarado!... – Godofredo Zebu gargalha longamente e
despreocupado. – Vou lhe dizer onde estou... calma... estou dentro
de um helicóptero. Você não acredita?... Não acredita mesmo?... –
mais outra gargalhada. Depois taxativo. - Prepara tudo aí embaixo...
vamos descer dentro de pouco tempo. – Godofredo Zebu escuta e diz
sorrindo. - Não é brincadeira... é sério. Você não está
ouvindo o barulho?... Então?!... Tá falado, Lagartão... desligo.
-
O besta quase não acredita que é verdade – comenta Godofredo
Zebu.
-
Pelo medo que tenho de altura... eu duvido até agora que estou aqui
nas nuvens – argumenta André Gustavo.
–
Mas é mania daquele retardado – afirma Godofredo Zebu –, aliás,
é hereditário. O irmão dele, por mais que eu recomendei, acabou
viciando em tudo que é droga. Eu mostrava o que havia acontecido com
os amigos dele que não me ouviram, mas ele era do tipo de pessoa que
não aprende com os erros dos outros... teve o mesmo fim. E Lagartão,
quando o irmão dele morreu, baleado pela polícia, também não quis
acreditar... não quis acreditar de jeito nenhum...
XI
- VOANDO MAIS ALTO
André
Gustavo nessa hora é tomado pela lembrança de Dona Agatha. Ele
também não quis acreditar quando ela morreu. Aquela mulher, para
ele, era uma santa e “santa não morre!” – pensava sua cabeça
infantil. Somente se convenceu de seu falecimento quando, numa das
fornadas que seu pai fizera, ele retirou algumas bolachas e foi até
o casebre dela. Lá chegando, olhou o vazio e recordou a voz macia e
rouca contando causos. Saiu dali decepcionado. Mas não teve tempo de
sentir saudade, pois o seu pai mudou de casa. André Gustavo não
ficou sabendo se foi porque, numa noite, uma cobra surucucu apareceu
em um dos quartos e todos acordaram de madrugada com as lamparinas
acesas, trepados sobre as camas tentando localizar o ofídio pelo
barulho de seu chocalho, ou uma tentativa de melhorar de vida. O que
ele não concordava com nenhuma das duas hipóteses, já que ali,
para ele, estava ótimo. André Gustavo também não imaginava que
seu pai fosse para tão longe. E que ficaria quase vinte e sete anos
sem rever aquelas paisagens.
Chegaram
à nova morada já de noite. A escuridão só era amenizada pela luz
da lua. Não havia energia elétrica no local. Dormiram sobre
cadeiras colocadas face a face, disfarçadas de camas improvisadas. O
sono foi cortado e acalentado pelo coaxar de pererecas e sapos no
tabual.
O
primeiro a acordar foi Pif – o cachorro que acompanhava a família
há alguns anos. Seu latido serviu de despertador. Latiu antes do
canto do galo. Talvez tenha visto um tatu passar à procura de
comida.
André
Gustavo levantou todo doído. O assento curvo, das cadeiras velhas de
vime, entortou suas costelas. Chegou até a porta e encantou-se com
um terreiro enorme, de barro batido, bem de frente para a cozinha.
Olhou ao redor e, num morro íngreme, o cafezal floria. Defronte da
casa um longo pasto, com muitas árvores ainda de pé, porém, todas
com o tronco totalmente seco e com poucos galhos. Com certeza
queimaram uma floresta para transformar a área em pastagem para os
animais que chegavam, vagarosamente, trazidos por cinco vaqueiros.
Mais
a oeste avistou duas casas. André Gustavo se perguntava como seriam
os vizinhos e, logicamente, os vizinhos, como seriam os moradores
recém-chegados – imaginou ele.
No
interior, a amizade e o congraçamento entre as pessoas se propagavam
com muita facilidade. Como o assunto do dia a dia é pequeno e
corriqueiro, eles aprofundam-se nos causos do passado, de aventuras
vividas e estranhezas reveladas. Era comum se reunirem ao redor de
uma fogueira, para prosearem sobre histórias de assombração.
Difícil encontrar alguém que não tivesse topado com uma alma
penada, em noite de lua cheia, na beira de um rio, à noitinha,
enquanto se banhava. Na maioria das vezes, o sortudo, estava sozinho,
pois o medo faz qualquer sombra de folha de bananeira, agitada pela
brisa, transformar-se num monstro, em acenos, chamando a vítima para
seus braços horrendos. Lógico que nenhum corajoso se dispunha a
conferir de perto, sem pestanejar, saía na carreira, nem olhava para
trás, pois escutava os passos e até sentia o bafo ofegante do bicho
horripilante em seu cangote.
Só
para ilustrar, a primeira história que André Gustavo ouviu foi a
mais assustadora que narraram ao pé da fogueira de gravetos secos
estalando em brasa: certa feita, um fazendeiro perfurou em sua
propriedade um poço artesiano, que só jorrou água quando atingiu
65 metros de profundidade. Ao colocarem os tubos, eles ouviram um
gemido pavoroso vindo do fundo do poço. Duas sombras avermelhadas
saíram pelo orifício do cano juntamente com a água. O fazendeiro
julgou que nas profundezas daquelas terras viviam muitas criaturas
que jamais poderiam conhecer a luz do sol. Lacrou o poço e plantou
uma imensa floresta ao redor. Hoje, a mata formada, trançada de
cipós e sapucaias, é considerada reserva dos habitantes
desconhecidos. Pois quem lá vai, ouve os gemidos das sombras. Dizem
ainda que, quem se arriscou nela entrar, nunca mais saiu.
Assim,
nem bem se passaram duas semanas e André Gustavo já trocava, com o
filho do vizinho, o seu garnisé invocado, por um carrinho de
madeira. Carregava palha de café, pra cima e pra baixo, naquele
pequeno brinquedo.
Apesar
da pouca idade, sua obrigação ao entardecer, era reunir as galinhas
no cercado para dormirem no poleiro. Nos primeiros três dias, ele
fez de uma vara de bambu, seu cavalo alazão e correu atrás das
penosas, levando-as para dentro do cercado, depois, elas mesmas, por
costume, se empoleiravam. No mês seguinte ganhou um rastelo novo,
para revirar o café no terreiro. Depois seus irmãos o ensinaram a
manusear o machado, a fim de lascar lenha para o fogão.
Num
domingo de sol quente, após a missa, André Gustavo experimentou uma
coisa fria, sua grande descoberta: picolé.
-
É muito frio...! Endurece a língua...! – reclamava ele.
-
Sopra que esquenta – repudiava um de seus irmãos.
Na
sua inocência, André Gustavo soprava e esperava um pouco, antes de
dar a próxima lambidela.
Logo
a vida se tornou uma rotina novamente. E, justamente para fugir dela,
é que André Gustavo, com mais dois amigos, combinaram pegar
mexericas num sítio distante. Para se chegar lá, era preciso pongar
na carroceria do caminhão de Seu Romerito, que passava sempre à
tarde. Pongar na carroceria do caminhão era fácil, pois eles mesmos
abriam a porteira para o enorme veículo passar e ainda ganhavam
algumas moedas em paga. André Gustavo se pendurou e segurou firme na
traseira da carroceria. Quando chegaram ao mexerical, seus dois
amigos saltaram e ele se manteve grudado no caminhão. Os amigos
gritavam:
-
Salta, André, salta!...
Ele,
afobado e com medo, não sabia direito como fazer para largar as
mãos. Ouvindo as vozes dos amigos cada vez mais distantes, chegou à
conclusão que era apenas abri-las... e então se soltou.
André
Gustavo viu o chão de barro batido passar defronte ao seu queixo.
Com a camisa aberta, sentiu o peito ralando no solo duro de pedrinhas
pretas, pontiagudas, que formavam uma lixa grossa. A dor e a gozação
dos moleques não significavam nada, ante a sua preocupação de como
entrar em casa. Porém, assim como fizera com o machucado causado
pela roda de ferro, André Gustavo escondeu de sua mamãe o peito
ralado. Lavou o sangue no córrego e não levou nenhuma mexerica para
casa. O fracasso da aventura o impedia de chegar contando vanglórias.
Andou de camisa abotoada por semanas a fio. Tomava banho escondido
para que ninguém visse as enormes cascas que se formaram. Depois de
sarado é que, um dos meninos, lhe ensinou o pulo do gato: de como
saltar de um veículo em movimento.
-
Você coloca os pés no chão, mas não se solta de imediato da
carroceria, apenas corre... tentando acompanhar a velocidade do
caminhão... depois você solta as mãos e continua correndo.
Só
um ano após, André Gustavo tomou coragem e repetiu – sozinho - a
mesma aventura. Levou até um bornal para trazê-lo repleto de
mexericas. Só assim se sentiu vingado do fiasco. Voltou distribuindo
as mexericas com quem encontrasse pelo caminho.
O
tempo transcorreu em longas caçadas, pescarias, brincadeiras de
salto altura e mergulho a distância dentro das águas do rio.
Apostavam até cocorotes: recebia um cascudo quem ficasse menos tempo
sob a água. André Gustavo sempre levava os cocorotes, mesmo assim
insistia nas apostas.
André
Gustavo sentia que seu mundo ali escorregava para uma rotina sem-fim.
Estava no meio de uma infância agitada e monótona. O novo era
sempre uma repetição de dias iguais. O que lhe dava esperança era
a frase: quando eu crescer... Ele queria crescer depressa...
adormecer criança e acordar adulto.
-
“Breve esse dia chegará” – repetia sempre no silêncio da
noite.
Sonhava
com mundos fabulosos. Já sabia que, após a primeira paisagem,
existia outra e após a outra, muitas outras mais. Isso acalentava o
seu desânimo.
-
Agora estou mais confiante...
As
palavras de Godofredo Zebu despertaram André Gustavo para a
realidade.
-
Você estava dormindo de olhos abertos, Mano?!... – gozou Godofredo
Zebu ao ver André Gustavo tomar um susto.
-
Desculpe... Desculpe. Estava pensando um pouco...
-
Em quê?... Pra quê?... Olha, as montanhas já estão em nossa
frente!
-
Agora eu dependo de vocês para me orientarem – disse o piloto. –
Indiquem o local do pouso.
-
Não se preocupe... tem um ponto de referência bem visível no
caminho... uma torre de celular.
André
Gustavo avisou discretamente:
-
Assim que pousarmos... depois de nos afastarmos em segurança...
vamos nos separar por...
-
Não...! De jeito nenhum! – atalhou Godofredo Zebu. – Tenho
planos...
Esse
era o temor de André Gustavo, Godofredo Zebu se mostrava muito
apegado.
-
Mas vamos pousar primeiro e sair dessa situação... depois... Olhe,
estamos chegando. Piloto, aquela casa... - Godofredo Zebu sentiu que
não deveria dar um local específico e desconversou. – Espere um
pouco... faça o seguinte... pouse naquele descampado... ao lado da
rodovia.
Pelo
fato de Godofredo Zebu não indicar um ponto conhecido para o piloto,
causou alívio em André Gustavo, pois temia que ele pretendesse
liquidar o rapaz ao término do voo. Godofredo Zebu ligou novamente
para Lagartão e bem bonachão explicou as coordenadas. O helicóptero
pousou num pasto e dois carros se aproximaram.
-
Caramba!... Os malucos cortaram o arame da cerca! – se espantou
Godofredo Zebu.
-
Não é bom atrair a atenção assim – avisou André Gustavo.
-
Porém logo que ganharmos a rodovia ninguém mais nos verá –
relaxou Godofredo Zebu. – E eu tenho uma carta enorme na manga.
Aliás, sei que você sempre anda com muitas.
-
É bom sempre estar prevenido – comentou André Gustavo.
-
O que fazemos com ele? – perguntou Godofredo Zebu referindo-se ao
piloto.
-
Liberamos. Eu prometi que se ele não criasse problemas...
-
Precisamos de um tempo... meia hora no mínimo. Temos que amarrá-lo.
Eu faço isso rápido. Alguém pode estar nos seguindo.
-
Não será necessário – assegurou tranquilamente André Gustavo. -
Os comandados do Caramelo devem estar ainda em serviço, ninguém
sabe que estamos aqui.
-
Como assim...?
-
Só um momento – André Gustavo pegou o celular. – Camaradas, o
executivo chegou ao destino e trouxe o acompanhante. Dentro de meia
hora encerrem as atividades. - Calmamente André Gustavo desligou o
aparelho. - Pronto, Mano, missão encerrada. E você, meu bom piloto,
aguarde aqui por meia hora e, como bom menino, levante voo. Retorne
para casa sem truques!... Seus amigos ainda estão de reféns na
empresa. Vale ainda o que eu lhe disse: não crie problema que não
terá nenhum.
O
rapazinho novamente conversou, afirmativamente, com o pescoço.
-
Ótimo!... Vamos embora.
Os
dois veículos alcançaram a rodovia e foram para lados opostos. O
piloto, embora prestasse atenção, não sabia mais afirmar em qual
deles se encontravam os seus passageiros. Nem ligou para esse
pormenor, pois estava decidido a esperar o tempo estipulado, não
poria em risco a vida de seus companheiros de trabalho.
XII
- CONHECENDO OS AMIGOS
Dentro
do automóvel, Godofredo Zebu se mostrava em casa. Apresentou seus
comparsas:
-
André, esse é Munheca Mole, o motorista bonitinho é Bicho Feio e o
dentuço folgado é Lagartão – e deslanchou nas explanações
humorísticas:
-
Em toda espécie animal, o macho é mais bonito que a fêmea. Não na
humana... não é, Bicho Feio?
Munheca Mole discordou mesmo antes de Bicho Feio se defender, apontou
com o dedo indicador que sairia em sua defesa, enquanto isso Lagartão
soltava enormes risadas. Mas Bicho Feio não deixou Munheca Mole
falar e resmungou:
-
Toda regra tem exceção.
-
Isso é só na matemática – respondeu Godofredo Zebu. – E você
não é um problema... gostou?
Munheca
Mole, que não conseguia falar, discorreu solene:
-
Pobres coitados, os homens se deixam iludir pelos olhos...
-
Munheca Mole, por acaso você virou filósofo? – indagou Godofredo
Zebu.
-
É questão de observação e não de filosofia. Então me responda
uma coisa: por que as mulheres se pintam?
-
Para... para... mostrar... – Godofredo Zebu meditou, mas não
encontrou uma resposta lógica e se rendeu num sorriso acanhado. -
Olha, sabe que você tem razão, Munheca. Sem pintura, algumas seriam
difíceis de encarar...!
-
Isso é porque, sem pintura, a alma fica nua – gozou Bicho Feio.
Munheca
Mole não se conteve e sacaneou:
-
Sua alma tá pelada, Bicho Feio?
-
Assim você vai traumatizar o homem...! – ponderou Lagartão. –
Mas... imagine a alma desfilando de fio dental – acrescentou no
meio de outra gargalhada.
-
O filósofo aqui é o Bicho Feio, sentiu a profundidade da afirmação,
André?
André
Gustavo apenas sorriu levemente e Godofredo Zebu prosseguiu numa
longa explanação:
-
Munheca Mole é muito homem só com macho, pois quando encara uma
mulher ele não consegue expressar seu pensamento. Aliás, ele nem
tem mais pensamento, nem respirar consegue. Trava tudo. Bicho Feio
que o diga. Ele presenciou quando uma moça chegou só para pedir
informação - Godofredo Zebu faz a encenação com voz fina:
-
Por favor... solicitou a mocinha inocente, pois Munheca Mole
acabava de sair da prisão... você sabe onde fica a Secretaria da
Saúde?... Munheca Mole começou a suar frio. O bigode tremia
junto com a boca. Ele conhece todas as ruas e todos os becos de cor e
salteado, mas o marmanjo esqueceu até o próprio apelido. Tanto que
se afastou feito doido, deixando a moça tendo essa mesma impressão.
André, ele tem tanto medo de mulher, que só assalta homem, de
mulher ele só quer uma coisa... distância.
Godofredo
Zebu perguntou sério:
-
Munheca Mole, conquistou alguma garota na Casa da Marilda Boqueira?
Lagartão
se intrometeu:
-
Que nada!... Tentei levá-lo lá várias vezes, mas não tem jeito,
entra empurrado e sai carregado. Eu cheguei a vendar os olhos dele
uma vez, com a desculpa que iria levá-lo à casa de um amigo meu,
mas que seria surpresa, garanti que ele ia gostar. Até achei que meu
plano havia dado certo, porém quando retirei a venda e ele viu a
moça que Marilda Boqueira arranjou especialmente para ele, foi o
mesmo que mostrar uma assombração. Acho que os nervos entraram em
greve. As mãos enrijeceram, os dedos se fecharam. Quando atacaram a
face, a greve foi geral. Munheca Mole já não abria a boca. Travou
tudo de novo. Precisei socorrer o danado, saí correndo com ele. Pior
foi a gozação depois...
-
Cacete!... Não é hora de puxar esse assunto!... – reclamou
Munheca Mole, enfurecido.
-
Calma, Munheca...! - recomendou metódico Godofredo Zebu. - De fato,
não é hora de esticar esse assunto. Acho melhor a gente parar de
divagar na vida das mulheres e pensar na nossa.
-
Também acho – reforçou André Gustavo que ficou calado todo esse
tempo, traçando boa parte de seu caminho e revelou: - Na próxima
cidade nos separamos.
-
Você insiste nisso, André!... Por quê?... Não somos de
confiança?... Eu tenho uma dívida enorme com você. Não sei onde
eu estaria agora se você não tivesse aparecido no Morro do
Junqueira.
-
Eu sou muito individualista... não estou acostumado a dividir
tarefas. Não é nada pessoal, entenda – explicou André Gustavo.
-
Eu conheço o seu método, mas não se preocupe... preciso de você
só para elaborar um golpe isolado. Não vai compartilhar nada... nem
se envolver.
André
Gustavo não podia concordar em elaborar nenhum ardil, pois suas
lembranças, vagueando, não permitiam. A última vez que tentou
ajudar alguém... quase lhe custou a vida. Bandido com sintoma
piedoso e alma de justiceiro não pode se aglomerar com o oposto.
Isso André Gustavo aprendeu quando presenciou a encenação maldosa
de Tapeta.
Virgilio
vacilou com Tapeta, ao postar-se de sentinela, dormiu em serviço.
Aliás, Tapeta perdeu esse apelido antes mesmo dos quatorze anos...
porque ele se transformou no próprio bicho impiedoso. Ninguém
queria mais correr o risco de ofendê-lo. O moleque nasceu com uma só
virtude: a pontaria certeira. Não perdia um tiro. Por medo,
abandonaram de vez o apelido e passaram a chamá-lo pelo nome, embora
feio e contraditório: Deusdetério. Tapeta engasgava na fonética de
algumas palavras e trocava, principalmente o C pelo T e o G pelo D,
mas ninguém achava graça em sua conversa tatibitate. Quando criança
cansou de responder para a professora que não sabia a resposta,
quando esta, denunciaria seu problema linguístico. Tanto que ele
adorava cocada com canela e cravo, mas se perguntassem qual a sua
sobremesa preferida, ele respondia: "pudim".
André
Gustavo, ao ver Tapeta aproximar-se de Virgilio, rezou pelos dois.
Repetiu frases que lhe foram ensinadas ainda no catecismo. Mas agora
elas se mostravam cheias de dúvidas, com pontadas claras de
incerteza: “o mesmo Deus que castigava Virgilio era o mesmo que
protegia aquele facínora?”
André
Gustavo conhecia bem a maldade da criatura sem etiqueta. Virgilio,
após muita discussão, alegando que embora tenha dormido em serviço,
nada de ruim sucedeu na favela naquela noite. Jurou, por todos os
santos, que não voltaria a acontecer. E Tapeta, como quem já havia
compreendido, ergueu as mãos para o alto em sinal de paz. Virgilio,
julgando-se absolvido, respirou aliviado. Porém Tapeta ordenou que o
segurassem. Em vez de matá-lo com um tiro, pegou a peixeira; testou
seu corte na digital do polegar esquerdo e a enfiou um pouco acima do
saco de Virgilio e puxou a faca, lentamente, para cima, até atingir
o estômago do pobre, que só teve tempo de ver as próprias vísceras
caírem no chão, seguido de seu corpo oco.
-
Só não tonsigo parar o tempo – vociferou Tapeta abstrativo
e alucinado, com os olhos em faíscas.
André
Gustavo sentiu vontade de vomitar. Não aprovou a atrocidade que
presenciou, mas não era hora de desafiar nem uma lesma morta, quanto
mais um possuído. Queria abandonar aquele grupo, porém a sua saída
causaria estranheza a Tapeta e teria de encará-lo. André Gustavo
passou a treinar tiro ao alvo. Praticou em todas as situações
imagináveis, sem cessar, sempre na mesma altura do inimigo.
Observava a posição do sol, o rumo do vento, pois só teria uma
chance... E a sua chance precisava vir antes de Tapeta puxar o
gatilho.
-
Amigo de bandido, bandido é, mas bandido que não perdoa bandido,
merece a morte – ouvira várias vezes essa frase de muitos
pervertidos.
André
Gustavo também pensava assim, porém Tapeta gostava de matar os
amigos para mostrar que ele era o capeta mesmo e garantir o comando,
causando terror em outras facções. Talvez nem gostasse de ser
chamado de Deusdetério, mas acostumou-se com o nome.
Demonstrando
intolerância, Tapeta novamente desafiou a coerência ao encontrar
com Ormandinho, que só não foi pego pela polícia porque fugiu,
largando a droga para trás.
-
Ormandinho, sua tonduta foi de um tovarde... abandonou
a mertadoria pensando te viveria para tontar a
história.
De
nada valeram os argumentos justos e os gritos de piedade de
Ormandinho, que revirava, em palavras precipitadas, o passado sujo de
ambos. Foram amigos inseparáveis na adolescência e compadres quando
adultos. Na cabeça malévola de Tapeta, o poder ficava acima da
amizade e da decência:
-
Perdão não se dá nem a tem o implora tom fé. Adora
você vai saber tem tanta de dalo nesse terreiro
– berrou Tapeta riscando a navalha, com força no pescoço de
Ormandinho, que quase o degolou. O infeliz rolou, gemendo calçada
abaixo, deixando um rastro de sangue na beira da sarjeta.
Desta
vez André Gustavo resolveu enfrentar Tapeta, mas quando ia se
pronunciar, alguém lhe tomou a vez por uma silaba:
-
Você que é um covarde, Tapeta – afirmou o crioulo Santos, já com
a arma apontada na direção de Tapeta. - Não pode querer que o
mundo gire a seu bel-prazer, seu demente!
André
Gustavo pressentiu que havia chegado a hora. Poderia até resolver a
pendenga apenas com palavras e reforçou a afirmação de Santos.
-
Deusdetério, Santos não soube se expressar direito... o que ele
quis dizer...
-
Fite fora disso, André – aborreceu-se Tapeta.
André
Gustavo conhecia Tapeta. Sabia que Santos não tinha a menor chance.
Insistiu:
-
Deusdetério, eu também...
Mas
Tapeta apenas levantou o braço esquerdo.
–
O taso tem de ser definido ati e adora. Vamos lá
valentão!... Dati só um sai vivo.
O
crioulo Santos estava mesmo decidido no tira-teima e com olhar
resoluto devolveu:
-
Hoje se segure o capeta, porque quem está com o fogo do exorcismo
sou eu.
Tapeta
rebateu gritando:
-
Às vezes é melhor fitar cego, do te padar pra
ver. Tomo você tér morrer... valentão? O taráter
da pessoa se nota pela tor da pele – ofendeu Tapeta.
A
vizinhança, como sempre fazia, fechou as janelas para não se
comprometer, nem presenciar alguma cena que não pudesse passar
adiante. André Gustavo, já que os dois aguardavam alguma reação,
pensou em sacar a arma e também apontá-la para Tapeta, mas não
teve tempo.
Tapeta
caiu no chão como um saco de batata e atirou. Santos, mesmo
atingido, revidou sem mira. Porém o destino sempre conspira a favor
da justiça e a bala atingiu a nuca de Tapeta, que como caiu, ficou.
Esse
era, agora, o temor de André Gustavo: entrar para uma gangue e se
ver obrigado a compartilhar cenas contrárias aos princípios que
comunga, aviltando a sua consciência. Tivera a chance de aprender
com a morte de Santos, não repetiria o erro.
-
Não trabalho mais assim... entenda.
Godofredo
Zebu surpreendeu André Gustavo:
-
Não conclua que todos são iguais ao monstrengo do Tapeta. Aquilo
não era gente!... Não se apiedava de ninguém.
André
Gustavo supunha que a sua vida não era tão comentada no meio da
marginalidade, mas o lado obscuro sabia muito a seu respeito.
Godofredo Zebu detalhou uma descrição de fatos passados.
-
Você foi o estopim que fez o Tapeta liquidar Cavaco. Sabia disso?
-
Eu não!... E por qual motivo? – interessou-se André Gustavo.
-
Pois eu vou lhe contar o que vi e ouvi... na conversa dos dois, em
que eu imaginei que o diabo fosse sair de mansinho, para não ver uma
guerra dos infernos. Eu presenciei o encontro de Cavaco e Tapeta.
Isso faz muito tempo. Cavaco entrou na sala de reunião e lançou um
olhar rápido para os presentes. Quando bateu os olhos em Tapeta, seu
rosto franziu e seu olhar manteve-se aceso. Firmaram um olho a olho
que Cavaco, por indeléveis instantes, quase demonstrou sua ira
sacando a arma. Todos receavam uma repreensão por parte de Tapeta e
um bafafá se deflagraria. Mas, para surpresa de todos e,
principalmente para Tapeta, Cavaco abriu um sorriso bonachão.
-
Estou aqui em sinal de união. Estamos sendo expulsos dos morros. E
nós precisamos de uma pessoa que possa nos assessorar e nos livrar
desses cercos constantes que a polícia executa. Deusdetério, você
precisa liberar André Gustavo para as outras irmandades... é hora
de unirmos forças e sei que você dispõe...
-
Nada disso, membro da minha corriola só sai quando morre -
garantiu Tapeta dogmático.
-
Mas então para que fui convocado para essa reunião? –
perguntou Cavaco... e foram suas últimas palavras.
Godofredo
Zebu, sinalizando que reprovava o ato covarde de Tapeta, lamentou:
-
Cavaco foi metralhado ali mesmo.
-
Então aquele acerto de contas... só entre os dois... não existiu?
– indagou André Gustavo abobado.
-
Não, era uma bruta cilada... e saiba que muitos deduziram que a
estratégia foi montada por você, para Tapeta eliminar Cavaco.
-
Minha nossa!... Eu estou sabendo disso agora!
-
Antes de Santos liquidar Tapeta, eu pensava em conversar com você
para tramar um jeito de exterminar o danado. Eu não gostava dele.
Felizmente, não foi preciso... o crioulo Santos, que Deus o tenha,
deu cabo do bicho.
Depois
da morte de Tapeta, a fama de estrategista de André Gustavo
atravessou os morros. Seus truques expandiram-se para outras facções
rivais. Recebeu convites, audaciosos, para articular assaltos a
bancos, esquematizar artimanhas no contrabando de drogas, até para
dar sumiço em corpos de desafetos, sem fazer fumaça, lhe
solicitaram.
-
Então foi por isso que todos passaram a me procurar com pedidos
absurdos...?!
-
Claro!... Antes ninguém lhe importunava devido Tapeta estar no meio
do caminho!... Lembra daquela luta do fracote desconhecido contra
Nero... o gorila de dois metros. Quem iria apostar no franzino?... Só
quem sabia da treta armada, é claro!... Joventino levou a culpa. O
lucro foi de quarenta e sete por um.
Godofredo
Zebu, mais uma vez assustou André Gustavo com suas palavras e cara
de sabichão:
-
Muitos jacarés engordaram com sua maluquice... Depois os cemitérios
legalizados... recebiam encomendas noturnas. Quem iria procurar
defunto enterrado lá?... Em qual cova?... Nada foi descoberto. Sem
corpo, sem crime. Anunciavam que iriam viajar e “viajavam” para
sempre. Entrei em contato com inúmeros empresários, marcando
“encontros” através de firmas conceituadas, que nem sequer
sabiam de tal simpósio. O malandro presumia que era uma oportunidade
de fechar “grandes negócios” e babau... Ah, sem contar os
folhetos que eram solicitados, em nome e no endereço do bobão, nas
empresas de viagens turísticas. As viúvas ainda ficavam putas da
vida. Todas acreditavam que o marido havia sumido no mundo. Não
pense você que eu só sei isso!... “Cara de Anjo” lhe diz alguma
coisa? – indagou Godofredo Zebu sarcástico, ansiando pela reação
de André Gustavo.
-
Era um prisioneiro que... Você sabe disso também?... Como...?!
-
Quer mesmo que eu diga?... Então lá vai. Os malandros bolavam uma
fuga coletiva da penitenciária, mas quando tomaram conhecimento da
sua engenhoca, formaram fila por ordem de lance. E quem foi o
primeiro da fila?... Cara de Anjo que ofereceu uma nota preta... o
apelido surgiu porque nenhum policial desconfiava dele. Seu rosto era
mesmo de um anjo. A criatividade de fugir em um dos barris da
lavagem, que eram recolhidos todos os dias, foi genial. Gastei uma
boa grana subornando um serviçal da limpeza carcerária e o
motorista.
-
Era você que estava na execução do plano? – questionou abobado
André Gustavo.
-
Digamos que sou um pequenino mosquito que guarda enormes segredos.
Quem você acha que tornou realidade o projeto que você desenhou?...
Eu mesmo. No fundo do barril, fiz o furo e adaptei o tubo que ia até
ao meio do barril. Era o limite que, pelos seus cálculos, indicava
onde deveria nivelar a lavagem. O volume do corpo de Cara de Anjo,
preencheria o resto e ele respiraria pelo tubo.
Godofredo
Zebu coçou a testa:
-
André, foi uma epopeia, puseram o serviçal que eu havia
subornado... de férias. Aquele barril esperou um mês inteiro para
entrar no presídio. Cara de Anjo ficou louco, querendo fugir. Até
que um dia ele conseguiu. Como a contagem era feita pela manhã, numa
inspeção visual de cela em cela, só deram pela falta dele no dia
seguinte. Cara de Anjo já estava do outro lado da fronteira. Aliás,
ele sumiu no mundo, nunca mais ouvi falar. Mas você sabe que em todo
plano aparece um apressadinho, que não quer obedecer ao ritual e
estraga tudo. Descobriram o método porque houve uma tentativa de
fuga fora dos padrões. Um idiota, metido a espertinho, furtou um
cilindro de oxigênio da ambulância e enfiou-se num barril com ele.
O transbordamento da lavagem despertou a atenção dos guardas. O
barril soltava bolhas de ar. Arrancaram o malandro mergulhado na
lavagem. Naquele dia revistaram todos os barris e encontraram também
o fugitivo da vez. Depois nada mais entrava ou saía do presídio sem
ser inspecionado, mesmo que estivesse em brasa viva.
André
Gustavo temeu que Godofredo Zebu lhe obrigasse a executar algum plano
sob ameaça de denúncia, mas:
-
Depois você sumiu de cena. Alguns acreditaram até que você havia
sido liquidado. Foram tantos anos que muitos de seus contatos
morreram.
André
Gustavo não podia confessar que foi nesse longo hiato fastidioso que
conhecera o Contratante e o outro lado de uma sociedade que vive de
aparências. Propostas, superiores aos seus sonhos, chegavam
recheadas de dinheiro. Pedidos de planos, ideias, sugestões e golpes
eram muito bem recompensados. Sua vida financeira mudou e André
Gustavo também, permaneceu todo esse tempo saindo com disfarces,
para a execução de suas tramoias.
-
É pena, André, que não queira participar – diz Godofredo Zebu. -
Você sempre foi... pé-quente. Contudo saiba que isso não muda, em
nada, a nossa amizade. Estarei ao seu inteiro dispor.
-
Eu agradeço e se um dia precisar, pode ter certeza, nos
encontraremos. Olha, uma vila...!
-
Quer mesmo nos abandonar...? – André Gustavo temeu novamente. -
Esteja à vontade. Ah, pegue... é a poesia do Filósofo. Uma
história comum. Alguém que já foi importante, mas caiu nas graças
das drogas e acabou na miséria das ruas. Às vezes me bate até uma
culpa... mas só às vezes... não me cabe bem essa carapuça, pois
no morro, todos sabem que viciado não tem emprego comigo.
André
Gustavo colocou a folha dobrada no bolso, se despediu dos amigos e
saltou na beira da rodovia. Retirou a cicatriz, a gravata e jogou
fora, separadamente, bem distante. Desalinhou o cabelo, puxou a
camisa para fora da calça. Também sujou um pouco os sapatos.
Precisava desfazer-se do tipo “empresário almofadinha”, seria
ele mesmo, afinal, ele não devia nada, quase nada, a ninguém.
Por
um breve instante André Gustavo se sentiu sozinho. Cursou a vida sem
conquistar amigos leais, que pudesse confiar segredos. Seu pai, nas
horas sofridas da doença, sempre resmungava:
-
Amigos não são apenas aqueles que nos cercam. Temos amigos
distantes, cobertos pela poeira da saudade. Amigos verdadeiros não
reivindicam a presença constante, basta um suspiro da lembrança que
o peito se abre para um abraço.
XIII
- DECISÃO ACERTADA
Era
mais um desafio que André Gustavo precisava encarar. A partir desse
momento não empregaria mais a sua inteligência para o crime. Só
lançaria uma única e derradeira cartada: em benefício próprio.
Para se livrar da corriola do Benício, eliminaria o Contratante. Foi
essa a conclusão que chegou numa introspecção que fizera durante
toda a fuga. Dos inimigos do Contratante, só restava um: ele - por
saber de tudo.
-
O besta aqui... André Gustavo – reprovou-se coçando o couro
cabeludo. - Não recebo a metade do último serviço, mas agrego um
item importante a meu favor, pois ninguém suspeitará de mim, já
que não se mata o devedor e o Contratante também sabe demais a meu
respeito.
Caminhou
tranquilo, como sempre fazia após desvencilhar-se de um aperto.
Passou a noite na pousada de um posto de gasolina. Acordou bem tarde
na manhã seguinte. No café, leu o jornal e ficou a par de tudo que
havia ocorrido na Empresa de Táxi.
-
“Idiotas!” – foi só o que comentou entre os dentes, aos
comentários dos jornalistas.
Quando
se atinge certa idade, os enormes erros do passado vão diminuindo de
tamanho... alguns até desaparecem. Isso acontecia com André
Gustavo. Por isso ele gostava de reviver alguns momentos de sua vida
pregressa, justamente para não esquecê-los.
-
Somos feito de uma massa esquisita: carne, sangue, músculos, nervos,
água e sentimento. Só este último é que varia de pessoa para
pessoa. - André Gustavo, às vezes, se achava um biruta perfeito, só
porque falava pelo coração. - Ele é, incontestavelmente, mais
sincero que o cérebro – concluía refletindo nas palavras de seu
pai.
-
Sempre dei muito valor à mágica realizada pela agilidade das
mãos, aquela que cega o assistente atento e o deixa de queixo caído.
Não gosto dos truques espetaculosos, que desaparecem com pessoas no
meio do palco. Todos sabem que elas pulam num buraco!... Isso já
está ultrapassado. Quando o show começa a perder a graça, é hora
de se perguntar se a culpa é do humorista ou da plateia. E engana-se
aquele que pensa que a realização plena está no topo da montanha
– dizia seu pai num sorriso justo –, porque a felicidade pode
ser encontrada em qualquer ponto da escalada.
E
André Gustavo foi aprendendo a lição e a aplicou ainda quando seu
pai era vivo. Nunca teve coragem de sair de perto dele. Quando seu
velho fazia um serviço em madeira, por costume, ele colocava vários
pregos na boca. André Gustavo, com receio que o pai engolisse algum,
o repreendia:
-
Pai, eu não vejo vantagem nenhuma colocar os pregos na boca. Há um
enorme risco de engoli-los.
O
pai parava o serviço e o alertava:
-
Filho, os pregos devem ser colocados com a cabeça para fora. Isso
impede que você os engula.
-
Mesmo assim, pai, é um risco desnecessário.
-
A vantagem, filho – esclarecia ele, simploriamente, numa explanação
nojenta -, é que o cuspe gruda no prego e evita que a madeira
ressecada, rache; então o serviço fica perfeito.
André
Gustavo, enfim, concordava. O pai se mostrava orgulhoso por acreditar
que lhe havia ensinado algo útil. Isso fazia André Gustavo feliz.
Tanto que, às vezes, no jogo de baralho, ele relaxava para que o pai
ganhasse; só para vê-lo sorrir e fazer festa. Nem desconfiava que a
alegria interior de André Gustavo era bem maior. Isso hoje lhe traz
muita saudade. Ainda escuta seu pai pedir:
-
“Filho, me leve para dentro. Parece que vai chover” – André
Gustavo obedecia e torcia para que chovesse.
André
Gustavo nunca teve desavenças com o seu pai, porque era impossível
discordar do velho, pois quando fazia uma explicação confusa, ele
mesmo amenizava:
-
“Mas ainda assim, acho que você me compreende mais do que eu a
você, filho.”
André
Gustavo olhou a paisagem montanhosa pelo vão da janela, impregnando
nela, o rosto sereno de seu pai:
-
“É velho, sua luz se apagou cedo, mas permanece iluminando o meu
caminho.”
André
Gustavo se informou dos horários dos ônibus. Enquanto três
caminhoneiros jogavam porrinha para decidir quem pagava o café, ele
se lembrou da folha que Godofredo Zebu lhe entregara. Desdobrou-a e
leu calmamente.
SOB
O JUGO DO VÍCIO
Sonhos
interrompidos, futuro destroçado.
O
silêncio reconhece a noite interminável.
O
remorso, inquieto, circunda acovardado.
A
derrota subjuga a fé e se instala intocável.
Seus
passos, de pés sujos, não pisam flores.
Sua
vil sombra ofende os nobres passantes.
Repugnantes,
inconcebíveis os seus odores.
O
nojo envolve a tosca estampa degradante.
E
ele, invisível, se detém ali, a presenciar,
Risos
estridentes, rostos fúteis entre vultos.
Assiste
ao que não poderá jamais saborear,
Felicidade,
festa, júbilo em sorrisos adultos.
Um
penar noturno que o dia busca esconder:
O
fracasso conquistado no esforço da vitória.
O
humor travado, no último aplauso sorver,
A
fuga do céu, para um inferno sem glória.
Molambo
que vagueia só, entre a multidão.
Especula,
como infame garimpo, a sarjeta.
Ocupa
o espaço, sem vínculo, nem noção.
A
identidade sem foto, gestos sem etiqueta.
A
vergonha envolta numa errante história,
Adormecida
sob os lençóis do lixo exposto.
Esconjuram
seus atos, rasgam sua memória,
Estupram
sua honra, cospem em seu rosto.
O
olhar taciturno... recita palavras em vão.
Foge
de seu inimigo, delira com almas amigas.
Conversa,
confina a visita, mostra sua mansão.
Abre
o melhor vinho... serve em taças antigas.
Saboreia
como criança que brinca inocente.
Enlouquece
de prazer no quimérico mundo.
Até
canta, dança, se apresenta cortês latente.
Conquista
sua dama de semblante profundo.
Baila
a valsa que ecoa da sublime orquestra.
Um
ser que se isola, que teme o cruel despertar.
Forja
o lazer, infausto... a alegria o sequestra.
Renova
seus amigos, esnoba o seu bem-estar.
Quase
louco, grita, esperneia, espalha receio.
Ninguém
paga pra ver, nem suspeita indagar.
Quem
é você que pede sem dizer pra que veio?
Não
tem ninguém com quem se preocupar...?
Nem
imaginam que ele já sorriu, já dançou.
Já
se vestiu, decente, já cantou... contente
Até
festejou, de fato, viu gente... viajou;
Foi
importante! Vejam! Já amou! Dolente.
Ah!...
E amou!... Verdadeiramente!
Mas
hoje vaga num vazio sem perceber.
Flutua
na saudade dolorida, cruciante.
Esmaga,
a cada lágrima, a fé de vencer.
Descreve,
ziguezagueia trajetória viciante.
Um
rei plebeu de simulada luxúria cativante.
Traga.
Cambaleia. Alucina. Viaja em jargão.
E
outra vez canta, dança em arbítrio mutante.
Sorve,
em êxtase profano, a passageira ilusão.
Morreu
em vida, de olhos abertos, expirou.
Coração
pulsando, com os vermes, sucumbiu.
Serenamente,
o próprio enterro acompanhou.
Beijou
seus entes queridos... e se despediu.
Jogou
flores brancas na cova sangrenta, rasa.
Quis
lápide simples, sem inscrição de alforria.
Morto
que anda, sente, respira e dor extravasa.
Puxa
a campa, resignado deita na calçada fria.
No
seu túmulo, brilham mil estrelas sombrias.
Coberto
de dourado luar, sob rico céu colorido,
Abraçado
às ternas e irrealizáveis fantasias,
Dormirá
sozinho, pela última vez, desvalido.
Numa
aventura fútil - um império intrépido.
Chegou
a hora de reaver a nobreza perdida.
Escarrar
pelas narinas o torpe sangue fétido.
Vomitar
pela garganta a esperança atrevida.
Mas
a buzina assustada, a freada vacilante.
Soam
em ecos febris, no prédio iluminado.
O
corpo rodopia ao vento e cai angustiante.
Parte
assim. No sobressalto do inesperado.
Vencido
pelo vício que a realidade dizima.
Seguido
do grito lamentoso de um passante.
Inerte,
permanece. Ninguém se aproxima.
Era
apenas um mísero andarilho errante...
André
Gustavo chamou a garçonete, acertou a conta e se pôs na orla da
rodovia à espera da condução.
De
repente, ele vê três viaturas da polícia surgirem na curva.
Sirenes ligadas e em alta velocidade. Sua reação foi a de um
observador anônimo. As viaturas passaram reto. André Gustavo soltou
o suspiro represado sem olhar para trás. Afinal, aquele fato, talvez
não tivesse nenhuma relação com o dia anterior. Como estava
permaneceu, apenas gostaria que um ônibus qualquer viesse logo. Com
a demora do coletivo, chegou a pensar em atravessar a rodovia e
seguir na direção contrária. Tal temor o fez recordar quando se
postava na soleira da porta da sala e olhava para o horizonte,
concebendo com tamanha realidade a aparição de guarnições
inteiras de soldados, a galope, vindo ao seu encalço. Ele se
retirava afoito para pegar a pistola e postar-se de guarda em posição
de tiro. E logo aparecia ela: Margarida. Correndo em sua defesa,
gritando que o amava. Seu sonho findava sempre assim; na realidade, o
romance retratava uma paisagem frívola, quase morta. Margarida era
uma moça direita, não tirava a roupa por dinheiro...
-
De que adianta ela não tirar a roupa... se todos a imaginam pelada?
– ouvia a frase de seus amigos acompanhada de gargalhadas.
Aquilo
deixava André Gustavo de orelhas vermelhas e o rosto pegando fogo.
Ela fora a sua primeira aventura mantida em segredo. Encontraram-se
no cinema. Seus olhos agudos e puros rasgaram a alma pecadora do
jovem André Gustavo. Entre o passeio de um cartaz e outro, no saguão
do cinema, começaram a conversar sobre o filme. A sessão foi
recatada. Os beijos que se desencadeavam na tela, deixavam os dois
idealizando quimeras. No fim, saíram sem destino. Passearam na
praça, tomaram sorvete, andaram de roda gigante no parque e depois
no balanço em forma de barco. Faltou luz naquela noite. As ruas
ficaram desertas e escuras. André Gustavo se dispôs a levá-la para
casa.
-
É perigoso uma moça andar sozinha – disse ele com seu olhar
protetor.
Ela
consentiu com um sorriso, demonstrando sabedora e acolhedora de suas
intenções. Pararam numa esquina e toda a conversa do amor
platônico, que eles vinham mantendo há mais de cinco meses,
tornou-se realidade. Ambos se declararam. Não havia mais espaço
entre eles para o sentimento se ocultar. Abraçaram-se como velhos
namorados. Tudo aconteceu ao acaso, numa construção inacabada na
rua da padaria.
Mas
qual futuro poderia, um ser desprezível como ele, oferecer para a
alma esperançosa de Margarida? Nessas horas ele sentava na soleira
da porta e meditava bem acordado:
-
“Por que vim parar aqui?... Qual a minha missão? Qual o meu dom?
Quando vou terminar a travessia desse túnel de dúvidas?”
Ela
tinha nome de flor. Alma de santa. Seus olhos não refletiam a luz;
tinham luz própria. Aquilo iluminava o coração de André Gustavo
com uma esperança contrária à vida que levava.
Todo
dia ela passava com uma cesta cheia de sonhos sobre a cabeça e, com
certeza, sonhos maiores rondavam por seu coração. Ela era muito
mais bonita que a própria flor que sempre trazia presa nos cabelos
compridos, levados ao bel-prazer do vento. André Gustavo a via como
uma princesa vestida de branco. Seu andar esguio pisava macio nos
paralelepípedos. O sorriso nobre era constante nos lábios e
transmitia uma suavidade incomum para aquele pobre plebeu mortal e
apaixonado. Não havia inquietação em seu rosto. Só um segredo
rondava o namoro dos dois: na rua, à luz do sol, André Gustavo era
um desconhecido para ela. Foi isso que combinaram, pois o pai dela
era contra qualquer interesseiro. André Gustavo concordara porque
achava que ela era um par valioso demais; ele teria até vergonha de
desfilar de mãos dadas com ela. E persistia uma guerra dentro dele:
sua falsa imagem, contra a decência de Margarida.
-
“Será que ela me vê como um príncipe ou como um sapo?” – se
perguntava todas as vezes que se amavam pelas casas abandonadas da
região.
-
“Vou mudar de vida. Largar o crime e procurar emprego. Enfrento o
pai dela e poderemos namorar às claras.”
Pensando
assim, num dos encontros, André Gustavo quis forçar a situação
para que o romance dos dois se tornasse público. Margarida dispensou
a sugestão como quem rejeita um pé de alface murcho, na hora da
xepa, em final de feira. O orgulho de André Gustavo não ficou
calado. Terminou tudo e ainda disse que não houve nada entre os
dois. Só sentiu o ciúme brabo fofocar em suas entranhas quando viu
Margarida, duas semanas depois, de mãos entrelaçadas com Oscar, o
"cara de peixe morto". Mesmo assim fez de conta que nem
ligou. Sorriu, recostado na parede em conversa animada com seus
amigos e prosseguiu como se o mundo, ao seu redor, não lhe
perturbasse. Mas os ventos sussurrantes do alheio chegaram aos seus
ouvidos.
-
Margarida vai se casar com Oscar... o "cara de peixe morto"
é vivo... beliscou a melhor isca. Já pediu a mão... e o resto
também!
André
Gustavo se triturou por dentro. Ainda era obrigado a presenciar
Oscar, soberbo, e Margarida, feliz da vida, desfilarem pela praça.
Os
ventos sussurrantes do alheio não paravam de borrifar novidades:
-
Oscar foi obrigado pelo pai de Margarida a assumir a gravidez. A
menina está grávida!... O velho pegou a arma e se Oscar fosse gago
não sei de dava tempo. O homem perdeu a estribeira!
Daí
à conclusão de que ele era o pai da criança, foi um espirro para
André Gustavo. Carregando o perdão, de braços dados com a
felicidade, ele passou a vigiar os passos de Margarida. Precisava
conversar com ela apenas para ratificar a certeza. Somente depois de
três semanas ela saiu sozinha para ir à padaria. Ele se aproximou
como quem passava pela rua, mas não soube expressar a sua intenção:
-
Está difícil de ver você sozinha!... Esperei... – depois foi
direto ao assunto. – Eu só queria saber uma coisa. Esse filho...
essa criança que você espera, é nossa?
Margarida
olhou assustada, pois nem desconfiava que André Gustavo soubesse da
gravidez. Porém, após um balançar negativo de cabeça, Margarida
confirmou com a boca também:
-
Não, você não tem nada a...
-
Não acredito – cortou André Gustavo num movimento agitado de
braço que a assustou. – Desculpe, aquele cara... ele... não
acredito mesmo!...
-
Problema seu se não acredita.
-
E tudo que falamos?... Tudo que prometemos um para o outro?... Não
vale mais nada, Margarida?
-
Você terminou comigo, lembra?
-
Foi no momento da raiva... agi por impulso. Vamos esquecer isso...
Você precisa...
-
Não sei viver perdoando...
-
Não pedi perdão... – rebateu André Gustavo com desdém e
arrependido ao mesmo tempo de suas palavras.
-
Então, agora, me faça um grande favor... me deixe em paz. Estou de
casamento marcado. Você não representa nada para mim – e soletrou
carrancuda. - Não atrapalhe a minha vida.
André
Gustavo sentiu que quem falava não era mais aquela princesa
sonhadora, vestida de branco, sentada num bosque, à espera do
Príncipe Encantado, e sim, uma criatura sincera, severa nas palavras
e segura de si. Talvez delineando o futuro fabuloso que levaria,
convivendo com a família abastada de Oscar e não uma vida
turbulenta, ao nível dos favelados, sem lei nem ordem. Intimamente,
André Gustavo chegou a duvidar que os dois tivessem mesmo transado,
mas ele não ia prosseguir gritando lance em leilão que não queria
mais arrematar. Orgulho por orgulho, ele também tinha o dele bem
guardado. Amargurado e sofrido, fez de conta que nem se importava com
o casamento dos dois. Numa despedida repentina, desabafou:
-
Desejo que você seja feliz. Adeus. – Virou-se e caminhou apressado
sem olhar para trás. - “Melhor que ela se case com aquele
almofadinha de bosta!... Pelo menos o futuro financeiro está
garantido. Acho que é isso mesmo que ela quer” – discorreu com
desprezo e ódio da vida bandida que o levara para a vala dos
rejeitados.
André
Gustavo não recebeu convite para o casamento. Nem foi desaforado de
comparecer nos arredores da igreja. Não teria coragem de lhe dar os
parabéns. Altivo, embebido pelo orgulho, almejou que, um dia, faria
meia-volta na vida e ela ainda lhe imploraria perdão.
Mas
a vida seguiu em frente, embora para ele, o tempo estivesse parado.
Sentia um vácuo no futuro. Os caminhos eram novamente todos iguais.
O pensamento vivia num pisca-pisca constante em Margarida. Sonhava
com ela vestida de noiva, com um buquê murcho nas mãos, caminhando
sôfrega, abatida, a passos indecisos num vasto campo. De repente ele
corria feliz ao seu encontro. Receptiva, ela arrancava o véu e abria
os braços, mas a sua imagem ia se dissolvendo no ar até
desaparecer.
-
“Hoje, digo sem medo de errar, que ela estava certa. Nunca fui uma
companhia na qual se pudesse confiar. Eu tenho mesmo duas caras. Ela
não amaria a face errada. Para que duas identidades, se só se morre
uma vez?” – murmurou no seu íntimo. – “Na verdade, nem
confessei para o padre, que ao colocar esmola na sacola, eu retirava
mais do que deixava. Acho que iniciei a subida desse calvário quando
senti que não havia ninguém que se preocupasse comigo.”
Numa
pontada repentina, uma das frases de seu pai avivou sua lembrança:
-
“Quase sempre, quando dois caminhos verdadeiros se cruzam, surge um
terceiro, falso, na tangente oposta.”
Seu
olhar entristecido, feito mendigo sentado à beira de uma escadaria,
com o chapéu roto na mão trêmula coberta de feridas, espelhava o
sofrimento desiludido. Concordava com seu pai, mas seu plano, devido
às vicissitudes de seu mal-acabado destino, era outro.
-
“Margarida, ainda nos encontraremos, pois quem se esforça para
mudar a opinião do próximo, não está muito convicto da sua.”
Enfim
o ônibus veio macio e parou ao seu sinal. O cidadão educado, André
Gustavo, adentrou desejando um “bom-dia” ao motorista e aos
demais passageiros que se encontravam perto da porta. Sentou numa
poltrona em que os dois lugares encontravam-se vazios e mostrava a
pista contrária. Aquelas viaturas mexeram com a sua sagacidade.
Aconchegou-se à janela e vigiou o trajeto.
As
vilas iam se avolumando. André Gustavo procurava as viaturas em cada
uma delas. Quando se curvou na poltrona para descansar, convencido de
que nada de novo aconteceria, ouviu vários disparos de arma de fogo
vindo do outro lado do ônibus.
-
Abaixem-se... – gritou o motorista preocupado com os
passageiros.
Todos
obedeceram imediatamente e o motorista, com o corpo curvado sobre o
volante, protegendo-se, estacionou o ônibus numa freada brusca,
fazendo André Gustavo bater com a cabeça na poltrona da frente.
Mesmo após a pancada, ele ergueu o pescoço para divisar o que
acontecia. Não conseguiu. Passou para a janela oposta e observou
muitas viaturas que cercavam um banco. Analisou ao redor e notou o
carro preto, no qual estivera, parado sobre a calçada.
-
“Maluco... só pode ser maluco. Godofredo Zebu caiu feito um
patinho, leu nos jornais que procuravam por nós longe daqui e não
raciocinou duas vezes. Caiu nas manhas da polícia. Idiota.”
André
Gustavo, meio agachado, investigou por que o ônibus havia
estacionado e viu toda a rodovia com barreiras instaladas pela
polícia. Deduziu que aquele assalto atravessara a madrugada. Seria
arriscado sair dali, permanecer no anonimato lhe parecia mais seguro.
Algumas passageiras, ao ouvirem mais disparos, começaram a chorar e
pedir proteção aos céus.
André
Gustavo ergueu-se um pouco para observar a rua. Assustou-se com a
explosão enorme que ouviu e uma nuvem de fumaça embaçou os vidros
da agência bancária. Gritos de ordens surgiam daqui e dali. Um
megafone foi empregado em bom som:
-
Larguem as armas e saiam de mãos para...
Parece
que foi uma ordem de abrir fogo, pois uma saraivada de tiros roçou e
estilhaçou quase todos os vidros do ônibus. André Gustavo
lançou-se ao chão. Os tiros prosseguiam e como o ônibus não era
mais atingido, ele concluiu que seus amigos estavam sendo executados.
Um
silêncio de alguns segundos se fez. Uma voz precavida avisou:
-
Calma, vamos aguardar a fumaça se dissipar. Parece que eles vieram
dispostos a tudo... melhor ninguém se arriscar.
-
“Então era esse o serviço que Godofredo Zebu queria que eu
arquitetasse. Maluco, agir da noite para o dia!”
Um
tiro isolado veio de dentro da agência. Três revidaram pelo lado de
fora e um grito forte de dor, acompanhado por um lamento baixinho,
fez André Gustavo estremecer.
-
Ai!... Malditos... – era a voz de Godofredo Zebu,
reconhecida por André Gustavo, que repetiu para si:
-
“Idiota corajoso.”
André
Gustavo assistiu à remoção dos corpos e agradeceu a Deus por ter
feito com que ele decidisse abandonar o grupo antes dessa besteira.
Inferiu até que Deus lhe pagara por algum favor que fizera antes.
André
Gustavo precisava planejar, minuciosamente, o caminho para chegar
incógnito, ao Contratante e executá-lo sem deixar pista. Retornou
ao pensamento temeroso, pois Godofredo Zebu demonstrou que sabia de
fatos que ele, até então, imaginava secretos. Temeu que outros
também soubessem.
-
“Até a briga simulada do fracote ele estava a par!”
André
Gustavo se pôs a reviver a luta para ver se desvendava algum
pormenor que lhe escapara.
-
“O franzino não demonstrava medo porque sabia da farsa. Mexia os
braços expondo seus músculos raquíticos. Enquanto que no outro
canto, Nero levantava-se como um monstrengo, exercitava os ombros e o
pescoço. Alguns, obedecendo às ordens discretas vindas através de
olhares insinuadores de Joventino, jogavam suas economias na
agilidade do franzino.”
-
“Encerradas as apostas” - berrou o trapaceiro acenando para o
juiz da contenda.
-
“O juiz fez os dois se aproximarem e apenas avisou: vocês conhecem
as regras. Após soar o início da luta... elas não existem mais.”
- “O gongo soou e todos esperavam o ataque avassalador do
grandalhão Nero. Mas este se conteve num passo a passo no ringue.
Tanto que a distância dos dois permaneceu a mesma por um bom tempo.
Depois o fracote começou a atacar com golpes de voadoras, acertando
Nero que nem se defendia... até estatelar-se na lona.”
-
Por favor – era a voz do motorista que despertou André Gustavo -,
senhores passageiros, queiram desembarcar calmamente. Vou solicitar a
vinda de outro ônibus, este está sem condições de prosseguir a
viagem. Por favor – mostrou, com a mão espalmada, o caminho da
porta.
-
“Eu não posso encerrar as apostas e nem me afastar do Contratante
– concluiu André Gustavo. – Não haverá marmelada nessa luta e
depois de soar o gongo, não vou mais andar de carona na vida de
ninguém.”
Apesar
de todo o atraso, André Gustavo retornou conformado com o destino.
Seu tempo era curto. Alojado em seu esconderijo secreto - uma casa
afastada do centro da cidade, em Jardim Baniceia - escolheu um
disfarce simplório. Ali, se maquiou de tal forma que poderia passar
perto do Contratante e da quadrilha de Benício, que ninguém o
reconheceria.
XIV
- ANIMAL ACUADO ATACA
André
Gustavo se manteve, por três semanas, no anonimato, mas acompanhando
de perto os passos do Contratante. Seu disfarce fez com que, várias
vezes, o caminho dos dois se cruzasse, porém André Gustavo era
apenas mais um idoso na multidão. Após identificar a rotina do
Contratante em seu novo escritório, no vigésimo quinto andar de um
luxuoso edifício e sem ter ainda em mente um plano para penetrar na
área de ação do inimigo, André Gustavo resolveu investigar onde
seria a residência de sua presa.
-
“Pilantra como ele, troca de carro, de escritório e de residência
como eu troco de cueca.”
André
Gustavo alugou um carro e saiu acompanhando o Contratante. No
primeiro dia, após a terceira esquina, mudou o percurso para não
levantar suspeitas. No segundo dia, já sabendo uma parte do trecho,
seguiu-o bem afastado. Só no terceiro dia, após alugar um veículo
diferente, é que André Gustavo alcançou seu objetivo. Descobriu a
fortaleza do Contratante, camuflada numa enorme casa duplex na Cidade
Alta.
- “Para um bom plano, um bom disfarce” – conspirou.
Assim,
ao anoitecer, um senhor calvo, de meia-idade, saiu da casa
esconderijo a passos lentos, corpo curvado e com uma bengala servindo
de apoio na mão direita. Esse André Gustavo ninguém conhecia. Não
quis ser o mesmo que perambulou pelas ruas à luz do dia.
Após
alcançar a rua de cima, através de uma picada, André Gustavo
chegou à praça do ponto final do ônibus de Jardim Baniceia.
Embarcou no coletivo e sentou-se sossegado. Sua missão era simples:
passar a noite de tocaia. Estudar o que o Contratante andava fazendo,
que horas saía e entrava em casa. Talvez gastasse mais algumas
semanas. Mastigando chicletes, subiu a escadaria da Cidade Alta.
Assentou-se ao lado de um mendigo, bem defronte à casa do
Contratante.
O
mendigo, ao pressentir a presença de alguém que se aproximou,
começou a conversar:
-
Boa-noite, poderia me dar uma ajuda, gente boa?... Qualquer moeda
serve. Peço porque não enxergo.
-
“Droga, nem posso perguntar sobre a movimentação da casa, mas, em
compensação, ele não me vê, basta que eu mude de perfume” –
praguejou André Gustavo, sem, no entanto, desanimar do seu intuito.
-
Não pense que eu sempre fui cego – prosseguiu o mendigo. – Já
fiz muita coisa errada nessa vida. A juventude, se não for
corretamente orientada, toma o rumo das emoções. Não demora nem
meses para se arrepender, mas aí já é tarde. O mau caminho, depois
de aberto, não dá para apagar. Você não imagina quantas vezes
retornei da porta do banco, por me arrepender, no último instante,
de efetuar o assalto. Eu era volúvel, às vezes, mixaria me
realizava, noutras desprezava milhões. Dei azar, uma vez fui preso.
Assim que pisei na cadeia, já no dia seguinte me apelidaram de
Mágico. Eu sempre tive muita habilidade com as mãos. Bastavam
algumas moedas ou um pedaço de barbante para que muitos ficassem com
cara de bobo em minha frente.
Por
um instante, André Gustavo se lembrou de seu pai. O mendigo não
sossegou:
-
Até que um desalmado, por inveja, num dia de fúria, quebrou seis
dos meus dez dedos. Olhe só – esticou as suas mãos sujas -,
escaparam os dedões e os dedinhos, os demais, após quarenta dias
engessados, endureceram. Hoje não servem nem para segurar um garfo.
Saí da cadeia após cumprir toda a minha pena. Sem ter rumo certo,
voltei para o lado errado, viciei nas drogas. O dia terminava e a
vontade incontrolável me empurrava para a perdição da noite. Como
uma marionete me aprontava e saía com destino certo: o antro da Casa
da Marilda Boqueira. Conhece?...
André
Gustavo não respondeu, mesmo assim o mendicante continuou num
sorriso de nojo:
-
Era o único lugar onde a preocupação e os problemas ficavam do
lado de fora, mas o vício entrava. Lá dentro parecia o paraíso
revestido de ilusão. – E sussurrou sádico: - Você sabe que
quando a mulher não tem nada de bom na parte de cima, mostra a parte
de baixo!... Infelizmente, no mundo do crime, só encontramos ajuda
de gente que tem o mesmo defeito nosso. Às vezes penso que seria
melhor se eu tivesse morrido no dia em que perdi a visão. Causaria
menos transtorno para a minha família. Mas Deus não quis!... Entrei
para uma gangue que praticava assaltos com armas e equipamentos
pesados. Eu não sabia muito da vida e topei ser a pessoa que abriria
a porta da agência para que os comparsas entrassem, isso foi numa
sexta-feira após o expediente externo. Devido ao meu defeito físico,
julguei que fosse fácil, que nem haveria reação. Um elemento me
daria cobertura. Fomos surpreendidos, um de nossos homens era espião
da polícia e mal entramos na agência fomos recebidos a tiros. Eu me
joguei no chão. O elemento que estava comigo retirou uma granada e
tentou lançá-la contra os seguranças. Só que ele foi alvejado e a
granada rolou para perto de mim. Fiquei sem ação por um instante.
Quando decidi sair correndo, a granada explodiu. Foi justo nesse
momento que eu perdi a visão. Olhei para a granada na hora e na
posição errada. Foi a última imagem que eu guardei do mundo com
luz: duas fagulhas entrarem em minhas vistas. Após aquele instante
em que eu fechei os olhos, tudo continuou como se eu os mantivesse
fechados até hoje, pois, ao abri-los, não fez a menor diferença.
Naquela hora eu me desesperei... gritei... praguejei... os guardas
não entenderam o meu desespero e atiraram nas minhas pernas – o
mendigo fez um silêncio forçado. André Gustavo ouviu um soluço. -
De todos os momentos ruins que passei... aquele foi o pior. Os dias e
as noites tornaram-se iguais: negros.
André
Gustavo jogou três moedas na lata do mendigo, este agradeceu:
-
Deus lhe pague, gente boa!... Que você tenha muita sorte em sua
vida.
André
Gustavo olhou a casa às escuras. Achou que nada aconteceria. Seria
melhor retornar para o esconderijo secreto. Ao dar alguns passos, um
movimento no jardim chamou a sua atenção. Uma moça saiu pela porta
principal e se dirigiu apressada para os fundos da garagem. Logo
atrás, apareceu o Contratante que, atarantado, gritava:
-
Espere, vamos conversar...
-
“Ótimo!... – suspirou André Gustavo. - Pelo menos algum
movimento.”
Um
carro acendeu os faróis junto com uma forte aceleração do motor.
André Gustavo se ocultou atrás do tronco de uma árvore. Ouviu a
moça gritar de dentro do veículo:
-
Não piso nunca mais nessa casa...! – e arrancou com o carro
parando no gradil que não foi aberto. – Abra essa porcaria...
senão eu arrebento!
No
segundo andar, uma janela mal iluminada se abriu e três vultos,
dois, visivelmente femininos, espiaram para fora.
André
Gustavo saiu detrás da árvore e se comportou como um transeunte que
caminha para a sua residência. Na esquina parou e observou a rua.
-
“Ele está em casa, mas tem muita gente. Até seu guarda-costas
deve estar por perto.”
André
Gustavo achou que sua cartada fora agraciada com um golpe de sorte.
Uma briga com uma moça. Aquela cena lhe acendeu uma luz invulgar.
-
“Para o grande final... um disfarce inusitado. Audacioso... que
comprei pensando em jamais utilizá-lo numa ação, e sim, na
terceira emergência. Creio que cheguei nela.”
André
Gustavo voltou ansioso direto para o esconderijo. Passou a noite e o
dia seguinte num planejamento meticuloso. Armaria uma arapuca
perfeita para o Contratante. Iria à toca do leão disfarçado de
leoa.
-
Depois da discussão que assisti... é fato consumado: as
investigações da polícia e principalmente a criatividade
jornalística, convergirão para o extremo das suposições amorosas
e absurdas.
André
Gustavo emitiu o mesmo sorriso torto, um pouco sem expressão, pois
ele estava a comemorar concretizado, o que ainda não havia nem
iniciado. Retirou-se da logística do plano e ensaiou alguns gestos
femininos, acompanhados de uma voz em falsete.
-
Rebolado bem delicado, passos firmes, pescoço inclinado para a
esquerda, olhar suave e, ao mesmo tempo, sensual. Gestos com os
punhos frouxos...
André
Gustavo abriu a porta do guarda-roupa e prosseguiu a encenação,
extasiante e cansativa em frente ao espelho. Poderia ser um pequeno
detalhe que eliminaria qualquer suspeita. Num gravador, ouvia e
repetia, imitando a voz de uma mulher.
Numa
lembrança repentina, ligou a televisão, pegou uma fita de vídeo e
assistiu ao documentário. Muitas mulheres andavam pela rua,
conversavam, sorriam, pulavam. André Gustavo atento, nem piscava.
Escolhia seu biótipo perfeito.
-
É essa que imitarei. Não vou criar uma personagem fictícia, posso
cometer algum pecado feminino e ser descoberto - e rebolou,
sincronizando a voz com um autoelogio.
-
Bravo, rapaz! Agora você ultrapassou os limites do machismo.
E
como uma boneca de fantoche, seguia as gesticulações harmoniosas,
observando toda a desenvoltura do corpo esguio da modelo. Ensaiava
seus gestos e, ao mesmo tempo, imaginava o itinerário que o levaria
ao escritório do Contratante. “Entrando no edifício”. “Chamando
o elevador”. “Chegando à porta vigiada por dois seguranças”.
“Solicitando informação”. “Entrando na recepção”.
“Aguardando ser “atendida” e... “Encarando o Contratante”.
“Abrindo o fundo falso da bolsa onde estará a arma com o
silencioso já instalado”. “O Contratante pensará que “ela”
vai pegar a foto da pessoa que deve ser eliminada”.
André
Gustavo suspende a encenação. Respira fundo. Fecha os olhos numa
aspiração convergente.
-
Só depende de mim. Quando é feito às escondidas tudo parece
natural, simples e prático, mas assim, face a face, requer uma
substancial dose de insensatez – e atirava na testa do inimigo, um
boneco instalado à sua frente.
André
Gustavo repetiu o ritual até ser automático: a fala, os gestos, as
escapatórias e réplicas que poderiam exigir jogo de cintura bem
personificado.
-
Agora vamos começar a segunda etapa... Plano F.
André
Gustavo se debruçou sobre a mesa cheia de papéis. Ali encontrou
seus desenhos explicativos: “saída sorrindo”. “Ajeitar o
cabelo como se tivesse havido algo a mais, naquela sala, entre eles.
Agradecer à recepcionista e fechar a porta delicadamente. Na espera
do elevador verificar o andar em que cada um deles se encontra e
decidir por aguardar ou seguir pela escada.”
Como
André Gustavo – travestido de um senhor calvo, de calça jeans e
camiseta que só variava na cor - alugou e equipou uma sala, no
décimo sexto andar do mesmo edifício; o que ele almejava conseguir
na fuga era simples: caso algum elevador estivesse por perto, o
usaria para descer até ao décimo oitavo andar e percorreria dois
pela escada. Notando que os elevadores demorariam a chegar, para não
ficar esperando, desceria direto os nove andares, já que, num prédio
tão alto, seria quase certo, que ninguém estaria peregrinando pelos
seus degraus. Entraria em sua sala. Retiraria o disfarce feminino,
jogaria no vaso sanitário e daria a descarga. Suas roupas, após
danificá-las e colocá-las nos sacos de lixo, junto com papel
higiênico sujos de mostarda e ketchup, lançaria pelo túnel da
limpeza.
-
Lógico que os ignorantes dos seguranças, mesmo vendo o chefe morto,
chamarão uma ambulância e, na esperança de ressuscitá-lo,
obrigarão os socorristas a conduzi-lo para um hospital – inferiu
na conclusão de seu plano.
Enquanto
isso, André Gustavo, sossegado, tomaria um bom banho. Mudaria seu
disfarce, sairia tranquilo e esperaria os fatos acontecerem. Após
isso evidenciado, bancaria o ousado, iria à sala do Contratante
requisitar a segunda parcela da última empreitada.
-
Quem sabe se não é verdade que ele deixou com a secretária!?...
“Sou o sobrinho preferido do Chefe que veio pegar seu presente
de aniversário” – relembrou com seu sorriso debochado.
Até
o susto, após receber a notícia da catástrofe, foi severamente
ensaiado, pois precisava ser convincente para merecer o prêmio.
Talvez até consolasse a pobre secretária. Quem sabe também
dissesse lamentoso:
-
“Pelo que ele fez... a tantos que ajudou... não merecia terminar
assim.”
André
Gustavo gelou.
-
Talvez não termine assim...! Preciso reservar uma manobra adicional
e essencial. Um recurso extra, preventivo, caso precise imobilizar a
secretária, antes ou após a execução. A secretária pode...
André
Gustavo voltou ao projeto...
-
Não tenho tempo sobrando, mas não posso ser pego de surpresa, senão
o que me livra pode me condenar. Algum memorando pendente... um
telefonema... uma urgência... uma notícia extraordinária. O
Contratante anda enrolado com mulheres. Vai saber quem é a cria...!
Quando tudo parece normal surge o desencanto... – suas lembranças
o avocaram para longe...
XV
- O RASCUNHO DO DESTINO
Quando
tudo parecia normal, surgiu o desencanto... seu pai resolveu mudar de
novo. Desta vez, para uma cidade com muitas casas, muita gente,
muitas ruas e nova surpresa.
-
Pif não pode ir – decretou seu pai.
Aquela
frase foi um convite à rejeição de um órgão transplantado. Pif
teria de ir. Não se separa irmãos gêmeos assim... sem explicação.
-
Pra que um cachorro na cidade? Vai morder as pessoas!... Lá todos
são estranhos. Ele fica aqui com o Seu Sebastião... os dois já se
gostam mesmo! – confirmou a mãe.
Para
André Gustavo só estava resolvido a parte do Pif, a parte dele não.
Em sua cabeça não fazia sentido. Após muito lastimar e abraçar o
cachorro, que não entendia o porquê de tanto chamego, André
Gustavo se deu por vencido. Ainda mais com a alegria que viu em Seu
Sebastião quando soube da novidade.
-
Claro que fico com ele... nós nos entendemos muito bem, não é Pif?
– perguntou Seu Sebastião, sorrindo para o cachorro que,
inocentemente, abanava o rabo.
Largar
Pif para trás com um vizinho que o trataria bem, começou a parecer
razoável para André Gustavo.
Mal
o sol nascia e a mudança já estava toda sobre o caminhão. A
família não possuía muita coisa, só o essencial: cama, mesa,
guarda-roupa, cadeira, armário e uma relíquia sentimental: o baú
coberto com couro de boi e desenhos prateados presos à armação –
o único presente de casamento preservado. Os trecos utilizados na
roça, como enxada, rastelo, foice, serrote, martelo - foram
amontoados num canto da carroceria.
Naquela
manhã, André Gustavo deixava para trás mais um pedaço de sua
aventura. Para onde iria era preciso recomeçar do zero. Novas
amizades, pessoas diferentes e paisagem bem menos convidativas, com
certeza, um caminho obscuro que teria de trilhar.
O
caminhão abriu a buzina se despedindo do lugar. André Gustavo sabia
que não mais voltaria ali. Que nunca mais veria Pif. Talvez o animal
pensasse que eles saíam apenas para um rápido passeio, pois
contorcia o pescoço, com os olhos atentos, sentado ao lado de Seu
Sebastião que acenava com os dois braços.
André
Gustavo observou o tabual onde os sapos cantavam a noite toda, a bica
que construiu no córrego, o vale da nascente com seus enormes pés
de bananas. Até do mexerical, ao passar perto, ele se despediu
pesaroso. Levava já consigo a saudade e prosseguia conceituando:
quando eu crescer...
Na
estrada, comprovava a sua teoria de criança: “as paisagens mudam a
cada curva”. Após a subida vencida, uma reta, após a reta, uma
descida. O panorama era outro. Um vilarejo. Uma casa solitária. Um
coqueiral. Um bambuzal. Depois tremeu de medo. O caminhão passava
sobre uma ponte alta e André Gustavo, de cima da carroceria, olhava
para os dois lados da ponte e só via água. Imaginava a largura
estreita da ponte, que mal cabiam as rodas do caminhão. Para André
Gustavo os pneus passavam rente ao abismo, qualquer descuido do
motorista, despencariam lá do alto e temia o baque do veículo, com
toda aquela carga, na lâmina de água dura. Teve a ideia de olhar
para trás, viu a ponte larga e folgou a respiração.
Quando
chegaram à cidade, veio a decepção. Era uma pequena vila, apenas
com algumas casas a mais. André Gustavo reclamou de estalo:
-
Pif poderia ter vindo com a gente. Olha quantos cachorros na rua!
-
Eu julguei que aqui não havia cães soltos – lamentou a mãe.
Pousaram
na casa de uma tia atenciosa e feliz da vida por estar recebendo o
irmão e sabendo que doravante ele moraria perto dela. A novidade
maior logo se fez às claras: a escola. André Gustavo ainda não
havia estudado à vera, só de brincadeirinha, com os irmãos.
Foi
matriculado numa escola pública e o que ele mais temia, de não
conseguir aprender todas aquelas letras que ora eram feitas de uma
forma, ora de outra, não aconteceu. Aos poucos foram se harmonizando
e formando sentido os contornos caprichados que a professora
desenhava, vagarosamente, no quadro-negro.
O
pátio, na hora do recreio, fervilhava de meninos e meninas. Todos
com um só pensamento: brincar. As novas amizades logo surgiram e fez
descobertas interessantes: pião, bola de gude, pipa, até bola de
futebol de verdade, pois a única bola que André Gustavo conhecia
era feita da bexiga do porco, cheia de ar, isso quando seu pai matava
um suíno e os irmãos estivessem dispostos a enchê-la.
A
rua larga passou a ser a extensão de sua casa. Tudo novo, tudo
diferente. Não ouvia mais os sapos coaxarem, nem os bois mugirem e
ainda havia uma praia bem perto.
Do
mar, André Gustavo bebeu um gole guloso quando nele entrou. Nem se
importou do gosto ruim, pois testificara, com absoluta certeza, que
toda aquela água era mesmo muito salgada. Aliás, a praia passou a
ser o seu passatempo favorito. Na roça, o rio era muito sem graça,
não tinha aquelas ondas estourando na margem, nem aquele corre-corre
frenético da criançada fugindo da marola. Depois de levar uns bons
caldos, aprendeu que deveria mergulhar sob elas. Enquanto ele tomava
banho, seus irmãos pescavam. O peixe era aguardado por sua mãe, que
fritava e a família comia, no almoço e na janta, quase todos os
dias.
Depois
foi o futebol que começava no sábado de manhã e só terminava no
domingo à noitinha. Os amigos, que antes se resumiam a três ou
quatro, passaram a ser incontáveis. Mesmo com tantos amigos e tantos
programas diferentes, a vida sempre entra numa espiral que começa na
ponta e acaba no centro. Tornou-se para ele uma longa rotina tediosa.
Como fugir dela? Inventar, arriscar e assumir as consequências?...
Porém sua mãe não lhe dava folga, nem mesmo para chegar atrasado
por cinco minutos para o almoço, isso só porque estava jogando bola
de gude com os amigos e não era permitido sair no meio de uma
partida. André Gustavo perdeu as contas de quantas vezes ela atiçou
todas as suas bolinhas no mato por esse motivo.
Logo
desvendou a melhor novidade. Um cinema seria inaugurado na Vila.
-
O que é cinema? – Perguntou André Gustavo aos irmãos.
–
Ah, é uma história engraçada. Inventada. Só que as pessoas fazem
de conta que está acontecendo com elas de verdade – explicou um.
–
Você entra num salão grande, com um monte de cadeiras, senta e olha
para frente. Aparecem personagens numa tela fazendo coisas
fantásticas, de verdade, mas é tudo de mentirinha – confirmou
outro.
Nasceu
o primeiro entrave para André Gustavo: precisava pagar para entrar
nesse tal de cinema. Inocente, pediu para o pai que negou de estalo e
depois insistiu com a mãe, que lhe deu um esculacho.
-
Pagar para ouvir lorota!... O dinheiro mal dá para a comida, menino!
Mas
André Gustavo não se deu por vencido. Quase todos os colegas da rua
iam ao cinema e ele ainda nem sabia o que era. Recolheu todas as
garrafas vazias que encontrou pelo mato e foi vendê-las para o
senhor de cabelos grisalhos do barraco localizado na esquina. Ele
comprava ferro, alumínio, cobre e garrafas de vidro. Para a
criançada representava a troca desses materiais inservíveis, por
bolinhas de gude, piões, gibis e guloseimas variadas, para André
Gustavo, um ingresso de cinema.
Dos
primeiros filmes que assistiu, ele não assimilou como que, atrás
daquele pano branco, acontecia tanta coisa absurda. Mesmo assim
continuou indo, só para acompanhar os amigos.
Ao
mesmo tempo do cinema vieram os gibis. Revistas em quadrinhos que
traziam histórias parecidas com as dos filmes. A sessão começava
às 14h15min, mas podia aparecer em frente ao cinema antes do
meio-dia, que já havia uma multidão de meninos com um monte de
gibis nos braços, num troca-troca interminável. André Gustavo
precisou catar mais garrafas e peças velhas que contivessem ferro,
cobre ou alumínio. Mesmo assim só conseguiu comprar dois gibis. Mas
ele não se abateu. Trocou os dois e se recolheu num canto para ler
rápido. Depois repetiu tudo de novo e assim, em quatro domingos já
havia lido muitos gibis; pois a negociação prosseguia dentro do
cinema e só terminava com o badalar de um gongo sonoro, que indicava
o início da sessão. Era de praxe a gritaria quando a tela se
acendia. Depois o silêncio tomava conta do recinto. Só valiam
gritos e sustos rápidos. Quando se prolongavam, vinha o lanterninha,
com a luz nos olhos do importunador que, caso não se calasse, era
posto para fora sem direito à devolução do ingresso.
As
tardes passaram a ter um novo sabor por um bom período. Mas nada é
eterno e tudo o enjoava; André Gustavo não sabia por que era assim.
Não se acomodava com a rotina, mesmo prazerosa. A repetição não
era o seu forte. Sempre queria algo novo, desconhecido. Procurava
quebrar a mesmice, mesmo que fosse para pior. Tanto que fantasiou:
-
"Vou experimentar fumar. Meus irmãos fumam. Deve ser gostoso."
Fumar
significava tornar-se adulto e era isso que ele mais queria. Vigiou
quando um de seus irmãos acendeu o cigarro. Esperou até ele
terminar e jogar a guimba pela janela. Correu para o quintal. Pegou a
guimba e camuflou-se atrás da casa. Ali puxou a fumaça e tragou. A
tosse brava, num rompante de engasgo sufocante, fez André Gustavo
jogar fora o cigarro já com os olhos cobertos de água. Mesmo após
esse embaraço, repetiu a operação dias depois, com mais prudência,
sem tragar. Tentando saborear a fumaça.
–
"Gosto horrível, eca!... Por que eles fumam?" –
questionou pensativo.
De
fato, o gosto era mesmo desagradável. Final de um cigarro, sem
filtro, cheio de nicotina, não podia ser saboroso. Talvez um
novinho, grande, tivesse outro sabor. Num sábado, um dos irmãos,
deixou o maço, quase cheio, sobre a cama e foi tomar banho.
-
"A hora é essa. Com tantos cigarros no maço ele não vai
dar pela falta de unzinho" – confabulou André Gustavo
após longa tocaia disfarçada.
Pegou
o maço e teve o prazer de fazer como o irmão fazia: batê-lo na mão
contrária e ver três cigarros saltarem para fora até a metade.
Retirou um e balançou o maço para que outro cigarro, do fundo,
ocupasse o seu lugar. Recolocou o maço, do mesmo jeito, sobre a
cama.
Aquele
cigarro merecia um ritual especial para a sua estreia. Não podia ser
às pressas, preocupado com quem pudesse aparecer de supetão. Iria
para o mato, longe de casa. Lá era tranquilo. Levou uma caixa de
fósforos com apenas alguns palitos. Sentou no tronco de uma árvore
e cheirou o tabaco raspando nas narinas. Bateu um dos lados do
cigarro na caixa de fósforos, pois este era o ritual que seu irmão
fazia antes de acender; talvez inserisse outro gosto ao fumo. Ajeitou
os lábios e o colocou na boca. Riscou o fósforo e aproximou a chama
até queimar a ponta.
–
"Não devo tragar" – se prevenia.
Mansamente
puxou a fumaça e a expeliu pela boca. Engoliu um pouco e se sentiu
muito mais homem quando a fez sair pelas narinas. O gosto era mais
suave, mas mesmo assim ainda não prestava. Segurava o cigarro
inteiro, com jeito, entre os dedos. Resolveu dar uma "tragadinha"
com atenção redobrada para que a garganta não recusasse a fumaça.
Não adiantou. Mal começou a tragar e a reação foi automática,
veio o engasgo. Desistiu de fumar e para não se sentir diminuído
como macho, perante a turma, propagava que não tragava porque
detestava o sabor. Alguns meninos, só um pouco mais velhos que ele,
tragavam à sua vista, isso lhe causava inveja, assim, a ninguém
revelou sua experiência frustrada.
André
Gustavo procurou novas descobertas, não gostava do fato de um dia
ser cópia do anterior. Só da escola não podia escapar. A
professora gritava, os colegas diziam sempre as mesmas coisas e o
uniforme então, o entediava. Mudava apenas uma listra na gravata a
cada ano que se passava. Porém, adorava quando chegava o dia do
desfile escolar. Era movimentado. Saíam para a rua marchando e na
volta, ganhavam como brinde, um pão com muçarela e uma garrafa de
guaraná.
Criança
parece não ter muita escolha. Precisa obedecer aos mais velhos e
todo mundo era mais velho que ele.
–
"Estou ferrado!" – deduzia desanimado.
O
que poderia fazer? O jeito era voltar ao refrão preferido: quando
eu crescer...
Foi
pensando assim que chegou aos treze anos. Nessa idade, as diferenças
que existiam entre ele e seus colegas, tornaram-se mais nítidas - a
começar pelas roupas. André Gustavo tinha dois calções e três
camisas, bem velhas. Ele crescia e elas iam ficando mais curtas.
Quando a mãe reparou que a sua barriga começava a aparecer entre o
calção e a camisa, André Gustavo presumiu que ganharia roupa nova,
mas sua mãe apenas desfez a bainha da camisa.
André
Gustavo observava os brinquedos que os garotos ganhavam de seus pais,
sem terem pedido nada. Bolas novinhas, bicicletas que cheiravam à
tinta fresca, patins e até relógio de pulso. Coisas impossíveis
para ele. Nem que catasse todas as garrafas da cidade daria para
comprar uma só daquelas preciosidades. Já não se sentia bem
brincando com seus amigos. Alguns pareciam não se importarem, mas
ele sim. Outros repudiavam a sua aproximação porque ele nunca
trazia brinquedos. André Gustavo passou a olhar, de longe, seus
amigos se divertirem. Por vezes, subia nas árvores e lá de cima
invejava a felicidade alheia.
Bodega
era serelepe e hábil. Difícil de alguém conseguir tirar a bola de
seus pés. Só ele mesmo para fazer André Gustavo prestar atenção
a uma pelada que não levava a nada, a não ser de vez em quando uma
briga por causa de alguma canelada maldosa. Mas Bodega não ficou
muito tempo ali. Partiu para o Rio de Janeiro, lá o esporte é bem
remunerado. O pai dele caiu em depressão, ficou triste com a
ausência do filho. Os vizinhos acudiam cada um a seu modo:
-
Seu Capistrano, eu sentiria muito orgulho em saber que um filho meu
está jogando futebol num time famoso...!
Seu
Capistrano não se empolgava e retrucava desanimado da vida:
-
A saudade é bem maior que o orgulho.
André
Gustavo não era criança de desistir diante do primeiro obstáculo.
Ali mesmo, sobre a árvore, começou a racionar uma maneira de
conseguir tudo que desejasse na vida e ao conceito habitual,
acrescentou, pela primeira vez, mais uma condição:
-
Quando eu crescer... e for rico... Agora sim!
Desceu
da árvore pretendendo ser alguém que sobressaísse nesse aglomerado
de destinos injustos. Uns com tudo, outros sem nada. Uns sorrindo,
outros chorando. Uns jogando comida fora, outros passando fome.
À
noite, praticamente não dormiu. Acordou mais de cinco vezes com
sonhos que o levavam ao sucesso e outros que o jogavam no fracasso
humilhante.
André
Gustavo fazia o que queria e chegava em casa a qualquer hora, sem
precisar dar satisfação de onde esteve e o que fez. Seus pais já
não ligavam mais para ele. A princípio, André Gustavo estranhou
essa liberdade, mas depois entendeu como sendo uma emancipação, já
que eles não podiam dar a vida que ele merecia, também não podiam
impedir que levasse a vida que queria...
XVI
- A HORA DECISIVA
O
despertador da sala fez André Gustavo esquecer seus pensamentos
mumificados. Suspirou:
-
“Assim caí na vida bandida e estou aqui... encerrando o último
capítulo dessa longa história. Depois... depois veremos.”
Concluiu
seu projeto com todos os detalhes pormenorizados e já que arrolou a
secretária, acrescentou mais outro empecilho, arriscado, mas
provável de ocorrer.
Três
dias consecutivos ensaiou na rua. André Gustavo observou o quando os
homens, feito ele, são idiotas. Recebeu olhares que diziam as piores
besteiras. Fato novo que ele não sabia como processar na mente
masculina e deixava transparecer, nos olhos, essa hesitação. Porém,
no quarto dia, já acostumado, fazia que nem notava.
-
“É o que todas fazem” – resmungou irônico.
O
desfecho estava chegando. Marcou hora com a secretária do
Contratante. “Lúcia Helena” - um nome meticulosamente escolhido.
Assunto: “do nosso interesse e estritamente particular” – assim
ninguém estaria na sala.
André
Gustavo fez o último ensaio.
-
Perfeito... só não pode chover...
Circunspecto,
olhou-se ao espelho numa concentração serena. Saiu a passos de quem
vai passear. Adentrou ao edifício como fizera nos três dias em que
saltara do elevador no vigésimo andar. Hoje pararia no vigésimo
quinto.
Seu
semblante, inabalável, admirava sua criatividade. Entrou no elevador
junto com outras pessoas. Algumas se cumprimentaram. A uma delas,
“ela” foi “obrigada” a responder com um leve movimento,
simpático, com a cabeça e um sorriso afável.
No
vigésimo quinto andar a porta se abriu. Apenas o ascensorista e um
casal “a” viram sair. Caminhou normalmente rumo à sala do
Contratante. Um dos seguranças, ao notar que aquela porta era o seu
destino, abriu a mesma. André Gustavo apenas sussurrou um fraco:
“obrigada” - num sentimento de viúva ainda em luto.
A
secretária, receptiva e sorridente, atentou nos lindos olhos verdes
da “mulher” que entrava e perguntou quase afirmando:
-
Ah!... Lúcia Helena...!...?
-
Sim – respondeu André Gustavo empregando apenas o monossilábico.
-
Prazer... meu nome é Glória. Vou ver se o chefe já pode recebê-la.
Um momentinho só, por favor... Lindos os seus olhos!
Do
que André Gustavo se viu obrigado a agradecer esboçando um sorriso
reprimido e com mais palavras:
-
Obrigada, querida...!
A
secretária, rebolando os quadris, abriu a porta e entrou. Demorou
três longos minutos, que para André Gustavo, ultrapassaram três
dias.
-
Lúcia Helena, por favor... pode entrar, querida.
André
Gustavo, delicadamente, levantou-se. Ajeitou a blusa e entrou. A sala
era grande, sem muita luz, justo para os clientes não se
identificarem às claras. O Contratante se acomodava em sua cadeira
giratória. André Gustavo caminhou como caminharia uma mulher que
entrasse em um antro de assassinos: passo a passo, receosa e tímida.
O Contratante adiantou-se preponderante:
-
Sente-se, Lúcia Helena... vamos direto ao assunto... diga em que
posso ser útil.
André
Gustavo vive o momento presente. Senta, abre a bolsa, que nem
revistada foi, - medita: “um grande descuido dos seguranças”.
Quando vai retirar a arma, o Contratante “a” interrompe no
movimento.
-
Desculpe, um instante, por favor – aperta uma tecla do telefone e:
-
Glória, venha rapidamente pegar um bilhete.
Quase
no mesmo instante a porta se abriu e a secretária entrou.
Enquanto
o Contratante escreve, ocorre uma troca de olhares e sorrisos
delicados entre as “duas”. O Contratante destaca a folha do bloco
e a entrega para a secretária, recomendando:
-
Avise agora mesmo... e não nos incomode por nada.
-
Sim, senhor... com licença.
A
porta se fechou. André Gustavo folgou ao ouvir a ordem expressa do
Contratante.
-
Pois não, Lúcia Helena, agora sou todo ouvidos.
André
Gustavo prosseguiu normalmente. Retira a arma do fundo falso da bolsa
e o movimento, tantas vezes ensaiado, é executado com perfeição.
Na mesma posição, relaxada, que se encontrava, o Contratante
permaneceu imóvel na cadeira. André Gustavo caminha até a porta e
aguça a audição. A secretária conversa com alguém ao telefone.
Parece que já repassou o recado do chefe, pois se despede e desliga.
André Gustavo não sairia agora, assim tão rápido. Retorna à mesa
e ajeita a cadeira na posição contrária à porta. Deixa a mão do
Contratante aparecendo por cima do encosto, como se estivesse
repousando o corpo. Volta para a porta. A secretária, ao telefone,
agora reclama com o filho e, aborrecida, o manda estudar.
-
“As mulheres adoram falar ao telefone” – recrimina André
Gustavo achando ter decorrido o tempo suficiente para o tipo de
acordo que são fechados ali, mas não poderá sair antes de ela
desligar.
A
secretária desliga o aparelho. André Gustavo prepara-se para contar
até dez e sair. Porém, nem bem começara a contar e o telefone toca
novamente. Após o “alô” ela apenas fica ouvindo e por fim
responde:
-
Ele está com uma cliente... Assim que desocupar, eu passo
imediatamente a informação – e desliga em seguida.
Aquilo
que André Gustavo supunha, aconteceu. Precisaria valer-se do recurso
extra. Conforme a encenação ele abre o fecho da bolsa, entreabre a
porta e se despede do Contratante. Sorri para a secretária que se
levanta e pede:
-
Pode deixar a porta aberta, Lúcia Helena.
A
secretária vai entrar direto na sala. André Gustavo a deixa passar
e entra atrás. Em seguida, já com o lenço embebido numa
substância, a segura forte por trás, abafando o nariz e a boca.
Fecha a porta. Dez segundos e ela se larga nas pernas frouxas. André
Gustavo a pega no colo e a coloca numa posição, acintosamente
sensual, na cadeira, justo em frente ao Contratante. Mirou, admirando
da porta, a cena visual de quem entra e vê os dois na maior
sem-vergonhice.
André
Gustavo, após limpar prováveis impressões digitais no relógio de
Glória, retira os fones do gancho. Não pode deixar o menor indício
e quanto mais tempo ganhar, melhor. Abandona a cena do crime
normalmente e aguarda o elevador. Pensa até em desistir da grana e
sair diretamente para o esconderijo vestido de mulher, encerrar ali
sua vida criminal.
-
“Como irão achar, se quem procuram não existe?”
Assim
decidiu que a logística do planejado não deveria ser desrespeitada.
Salta no décimo oitavo e desce dois andares. Entra em sua sala sem
ser visto por ninguém.
-
Sucesso total – vibra André Gustavo iniciando a retirada da
maquiagem, lentes de contato, cílios, enchimentos e; de cara limpa,
novamente admira-se ao espelho.
–
Genial...!... – e imita a secretária. - Prazer... meu nome é
Glória. Lindos os seus olhos!
Tudo
terminado. Pela calmaria, Glória ainda dormia sobre as pernas do
Contratante. Talvez aquele que recebeu o recado ligasse de volta e
como ela, supostamente, permanecia pendurada ao telefone, ele viesse
pessoalmente ou comunicasse aos seguranças para que interferissem.
-
“Porém, se abrirem a porta do Chefe, irão fechá-la pedindo
desculpas pela invasão de privacidade”.
André
Gustavo sorriu sádico e retornou ao trabalho de transformação.
Daquela sala sairia um novo personagem: um rapazola de barba e bigode
ralos, com um pequeno cavanhaque para não revelar a dimensão de seu
queixo. Cabelos encaracolados e dentes salientes. Trajando roupa
esporte e tênis berrantes. Usaria pela última vez a verruga.
-
Ninguém pode ser perfeito – comentou colando a saliência
asquerosa no rosto.
André
Gustavo achou que a situação era propícia para que ele abandonasse
a toca. Voltaria depois do caso esclarecido. Desceu normalmente de
elevador. Saiu do edifício e nenhum sinal de alarme ainda havia
soado. Entrou na lanchonete em frente e pediu um lanche. Estava
realmente com fome.
Vinte
minutos e, apesar de todo o barulho da rua, sobressaiu uma correria
audível em alguns andares. André Gustavo teve a confirmação do
fato quando ouviu, bem nítido, um indivíduo assustado, sair do
edifício, gritando:
-
Foi no vigésimo quinto... Desconfiam de crime passional, pois entrou
uma gostosona e... parece que a secretária é amante do cara que foi
pego no flagra... – o indivíduo, ao ver-se cercado por muitos,
diminuiu o tom de voz.
André
Gustavo imaginava o que acontecera lá no alto:
-
“Mais um crime perfeito”.
Não
demorou muito e a sua intuição foi atestada. Uma ambulância parou
em frente à portaria. Dois enfermeiros saltaram apressados
carregando uma maca. O movimento de curiosos na rua foi aumentando.
Todos querendo saber o que estava ocorrendo. Observavam nas pontas
dos pés.
Os
dois enfermeiros voltaram com cuidado, trazendo o Contratante coberto
por um lençol.
-
Morreu? – perguntou um.
-
Parece que sim!...
-
Ninguém sabe – acautelou-se outro.
André
Gustavo só queria ter a certeza que os seguranças seguiriam a
ambulância, o que também se confirmou. A secretária estaria
sozinha, talvez sem entender direito o que lhe acontecera, mas
bastante sóbria, pois, após o desmaio, o sonífero não deixa
sequelas de esquecimento.
André
Gustavo não teve pressa em lanchar. Morrinhou o tempo suficiente
para que o tumulto da rua se dissolvesse e os passantes não
comentassem mais o assunto. Assim, ergueu-se para tentar o seu golpe
de sorte.
A
secretária, como ele imaginou, estava chorosa. André Gustavo chegou
comedido e perguntou pelo Contratante. A secretária quase não
conseguiu explicar o incidente e ele ficou sem saber em qual parte do
soluço, deveria tomar o susto e demonstrar-se embasbacado com a
notícia. De fato, ele se viu obrigado a repetir o ensaiado.
-
Pelo que ele fez... a tantos que ajudou... não merecia terminar
assim. Se eu puder ajudá-la em algo... Senhorita...? – André
Gustavo aguardou.
-
Ah, me perdoe... estou meio tonta... meu nome é Glória e não sou
senhorita. Mas não, obrigada... agora não há mais nada... – e
desatou no pranto, que controlou e prosseguiu soluçando – nada que
possa ser feito para... Desculpe, o que você deseja?
André
Gustavo respirou fundo e:
-
Bem... Eu sou... ou... eu era: “o sobrinho preferido do Chefe...
que veio pegar seu presente de aniversário” – pronunciou
acentuadamente.
A
secretária, num espanto, olhou-o fixamente.
-
Você disse... “o sobrinho preferido do Chefe... que veio pegar seu
presente de aniversário...?”
-
Sim, foi isso que ele pediu que lhe transmitisse... Ah, meu Deus...
parece que ele estava adivinhando... que... – André Gustavo faz
uma encenação dramática. - O chefe, que Deus tenha compaixão, me
informou que deixaria aos seus cuidados... uma... – fez uma pausa
proposital e:
-
Uma maleta... - completou a secretária triste. - Ele deixou sim –
confirmou cabisbaixa -, está na gaveta da mesa... Mas eu não tenho
coragem de entrar lá sozinha... – e choramingou de novo.
-
Eu vou com você... – prontificou-se André Gustavo. – “Santa
inocência” – pressupôs mordaz.
-
Então... por favor.
André
Gustavo adiantou-se, abriu a porta e entrou. A secretária o segue.
Medrosa, pega a maleta e lhe entrega.
-
Como você pode ver, ainda está lacrada. O chefe falou muito bem de
sua pessoa... Eu estava na sala quando ele ligou. Parece que você
teve problemas... e precisou viajar...
-
É... mas agora está tudo bem... com minha tia... É quase uma mãe
pra mim. Foi quem me criou – André Gustavo engoliu a seco o
elogio, mas não acreditou ter cometido um deslize; seu tirocínio de
sobrevivência não o enganaria e convidou. - Vamos sair?
A
secretária retirou-se rapidamente, como quem foge de medo do
recinto. André Gustavo ofereceu novamente ajuda que foi,
delicadamente, recusada por ela. Numa despedida simplória e com a
alma saltitante, ele se vangloriou: “meu plano não deveria ser tão
perfeito.” Pela primeira vez usaria cinco disfarces para conseguir
seu intento. Pensou novamente em ir embora assim, mas a logística do
plano não poderia ser quebrada. E uma frase repetiu em sua mente
para assegurar:
-
“Como irão achar, se quem procuram não existe?”
André
Gustavo não esperou o elevador, retornou para a sua sala descendo os
nove andares pela escada. Abriu a maleta, retirou o dinheiro e,
precavido, a destruiu, pois poderia conter algum tipo de localizador
instalado nela. Ajeitou os pedaços num saco de lixo e jogou tudo
pelo vão da lixeira. Transferiu o dinheiro para uma pasta de
executivo. Repetiu toda a operação da troca de disfarce. André
Gustavo desceria como um senhor moreno claro, de cabelo ruim, que
puxava, levemente, de uma perna.
Saiu
da sala assoviando. Esperou o elevador juntamente com uma senhora bem
arrumada, que trajava um longo vestido e carregava uma pequena bolsa
que mudava de mão a todo instante. No lado esquerdo do peito portava
um broche fora de moda. A mulher se mostrava, nitidamente, impaciente
com a demora do elevador. André Gustavo não deu trela para assunto,
apenas concordou com uma expressão facial. Não queria fazer mais
uma voz falsa. Desceram entre algumas pessoas e a senhora reclamou o
tempo todo com a ascensorista, que, pacientemente, escutou seus
argumentos infundados.
No
térreo, André Gustavo já se sentia um novo homem. Livre de toda a
vida passada. Com o montante que conseguiu arrecadar nesses dez anos,
iria para bem longe. Onde não precisasse viver disfarçado atrás de
um personagem fictício. Usaria seu verdadeiro rosto. Nem sequer uma
barba, peruca, nem mesmo um pequeno bigode ou cavanhaque. Pois
esperava que, após a notícia da morte do Contratante se espalhar,
os capangas de Benício, cessassem a perseguição, já que não
haveria mais recompensa por sua cabeça.
Porém,
agora, embora não ensaiara nem um passo desse plano, seu desejo era
procurar seu filho. Conversar com Margarida. Talvez comprasse um
rancho; nele criaria cavalos e plantaria muitas árvores. Abandonaria
essa vida escravizadora. Talvez também, um dia, escrevesse um livro
de ficção, sobre como sobreviver numa cidade grande sem praticar
crimes. Só para se realizar como homem.
-
“Um rapazinho de quatorze anos!... Como será ele? Gosta de fazer o
quê?... Preciso investigar, não planejar. Quero ouvir sua voz
dizendo: “papai”. Ver seu sorriso!... Dar e receber um abraço
apertado. Brincar... correr. Creio que vamos nos divertir muito.
Preciso ensinar para ele o caminho correto. Pedirei até perdão para
Margarida: perdoe-me... Agora sei o quanto fui mesquinho.
Reconheço meu erro abertamente. Você é a mulher certa para
preencher a minha vida. A gente dá muita cabeçada... demora a
perceber que perde muito... ficando longe de quem se ama.”
Um
temor fez André Gustavo retocar suas intenções:
-
“Talvez Margarida esteja feliz. Teve mais filhos e... meu filho nem
me queira como pai. Pode me rejeitar berrando: “já tenho o melhor
pai do mundo, cai fora!”... Já dizia mamãe: “criança é
coisa complicada de se entender”. E ela tinha experiência,
conhecia as artimanhas da juventude. Preciso agir com prudência.
Sondar o ambiente sem que saibam da minha existência. Analisar a
situação e planejar um jeito... vou chegar de mansinho. A surpresa,
às vezes, afugenta a quem se quer apenas acariciar. Vou primeiro
conquistar a confiança dele como amigo nor...
O
metralhar, seguido de um grito de desespero, afugenta a esperança,
acorda o silêncio no pensamento sonhador. André Gustavo fora
surpreendido por uma saraivada de tiros partindo de dentro de um
furgão escuro. A gritaria da rua estoura em seus tímpanos. O sonho
é interrompido e retorna o pesadelo real. O corpo pesa. O sangue
queima nas veias. Seus joelhos curvam. Sente a pasta ser arrancada
com violência de sua mão e uma voz vitoriosa ordenar:
-
Vamos embora, avise à Glória... o serviço foi feito.
André
Gustavo xinga, mas se julga um idiota. Deixou-se enganar por uma
secretária! Subestimou o frágil inimigo. Pela primeira vez, a
beleza santificada o traiu.
-
“Ela sabia o tempo todo... aquela vagabunda. Colocou uma câmera na
maleta?... Diabos...! Ela acompanhou... a minha descida até a sala
e... a senhora inquieta que aguardava o elevador. Aquele broche...!
Maldito plano!... A fingida chorou a morte do Contratante!... Ao me
entregar o dinheiro... até pensei que ela não sabia... com que tipo
de gente lidava!... Velhaca!... Safada! Vadia!”
O
céu tornou-se cinza escuro. Clarões acendem as trevas trazendo
centelhas às suas vistas. As pessoas, em vultos turvos, param
distantes e investigam curiosas. André Gustavo sua frio. Aquilo
jamais poderia acontecer com ele. Cadê seu meticuloso
planejamento?... Queimara todas as possíveis falhas. Elaborara,
minuciosamente, a rota de fuga. Agora se encontrava sem álibi, sem
testemunhas reais. E o que era pior - sem esperança de um milagre.
Aceita, em seu desespero, ser humilhado pelo pai de Margarida. Seu
plano era perfeito: dois personagens para a localização. Um para a
execução e dois para a fuga. Quem mataria o Contratante não sairia
do edifício. Quem pegaria o dinheiro, não transportaria. Agora
queria apenas ter lanchado e retornado para o esconderijo. Mas
deixaria muito dinheiro para trás...
-
Nada vale mais do que a vida, filho.
A
última lembrança que guardava da morte de seu pai lhe veio acesa.
Vê o leito fundo no quarto sem luz. Aquele senhor esquelético que
lhe sorri:
-
Hoje me encontro aqui deitado. Todos os meus amigos e parentes se
foram. Alguns soltaram o último suspiro ao meu lado. Não
acreditavam que o tempo findou. Que foi assim... de repente. Muitos
morreram sem despedidas, em plena vida. Sem acenos, nem lamentos.
André
Gustavo, incrédulo, admirava seu pai, cônscio, acariciando os
cabelos do neto de quatro anos, que brincava e ao mesmo tempo
prestava atenção.
-
A morte é invisível, sempre nos pega de revés, André. O mundo vai
ficando cada vez menor. Ainda bem que sua irmã trouxe o meu neto
para junto de mim... e eu sou feliz porque você nunca me abandonou.
Foi
assim que seu pai morreu: cercado pelo filho e pelo neto. O neto nem
notou, achou que o avô havia dormido. Saiu de perto e foi brincar no
quintal.
André
Gustavo entendeu por que todo fim, sempre chega fora de hora. Sorriu
e lembrou-se do dia em que levou um coice do cavalo. Acordou
assustado sem saber onde estava, nem que horas eram e como foi parar
deitado na cama do vizinho. O olhar preocupado de todos, fez com que
ele entendesse metade do acidente. Seu pai, pacientemente, como
sempre, explicou:
-
André, aprenda uma coisa, meu filho: todo cavalo dá coice e toda
arma está carregada... sempre, entendeu?
A
respiração abafada de André Gustavo o trouxe de volta à realidade
da rua. Estava cercado de gritos que iam fechando o cerco ao seu
redor. Ele apenas desejou repetir sua frase preferida:
-
“Quando eu crescer... e for rico...” – e, quimérico,
acrescentou: - “Quando eu me casar!... Quando eu envelhecer!...
Há muita vida honesta à minha espera.”
Num
lampejo delirante, o último sentimento germinou na escuridão que se
acendeu:
-
‘Meu filho!... Margarida!... Devia ter planejado outra vida. Nunca
ter entrado nessa estrada sem volta. Fui escravo da ambição... me
deixei levar... nunca me guiei...”
Esse
foi seu primeiro e irreversível equívoco, talvez indignado com as
portas estreitas e aferrolhadas de uma sociedade sem consciência
gregária, contrastando com o mundo do crime, cuja porta larga,
encontra-se constantemente aberta e quem por ela passa, dificilmente
retorna à vida.
André
Gustavo tombou de cara na calçada, apagando as trevas que acendeu
durante toda a sua existência obscura.
Fim